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O útero interditado

por Laísla Dantas Chagas

No início do século XIX, a partir da modernidade/racionalidade europeia, a medicina, por meio da anatomia, biologia e psiquiatria, começou a fornecer os argumentos necessários para justificar as demarcações morais da hierarquização dos seres humanos baseada na corporalidade. Estruturas, como o esqueleto e o sistema nervoso, que antes eram vistos como comuns aos dois sexos, passaram, por meio de uma “anatomia política”, a serem diferenciadas, demonstrando uma suposta inferioridade do corpo feminino.

A consolidação da dominação cultural europeia foi elaborada sincronicamente ao paradigma racional/moderno e é constitutiva do estabelecimento das relações capitalistas e urbanas. O capitalismo, por sua vez, enquanto sistema econômico e social, está intrinsecamente ligado ao racismo e ao sexismo, visto que precisa justificar e mistificar as relações de dominação e subalternidade que estabelece a partir da essencialização/naturalização daqueles que explora.

Assim, na suposição de que, em virtude de certas transformações biológicas, fisiológicas e endocrinológicas específicas, o corpo da mulher é patologizado, justificam-se a posição social e a atribuição de inferioridade de suas capacidades físicas e cognitivas. Apoiando-se no essencialismo, o pensamento misógino confina as mulheres às exigências biológicas da reprodução.

A ideologia da (re)produção era tão abrangente que atingiu a maneira de perceber e falar sobre os corpos. As mulheres passaram a ser vistas como fábricas cuja função é produzir (e criar) trabalhadores a partir de seus úteros-máquinas. Consequentemente, a menopausa é entendida como momento de inutilidade e a menstruação, como uma falha no processo reprodutivo, visto que materializa a não geração de uma nova vida, a não produção.

A expressão da enfermidade também ocorria de forma diferenciada, conforme o sexo. A própria existência já colocava as mulheres na condição de doentes, uma vez que uma série de fenômenos transformariam suas vidas constantemente, como as “hemorragias periódicas” e a gravidez, retrato da redução das mulheres a seus hormônios – como um império do “corpo hormonal”.

Quanto às enfermidades da mente, imperava a crença de que, em sua fisiologia, estaria inscrita uma predisposição à doença mental. Falava-se inclusive em “loucura menstrual”. Os psiquiatras compartilhavam a ideia de que a maternidade, vista como a verdadeira essência das mulheres, constituía um dos remédios mais eficazes para prevenir/curar os distúrbios mentais. Assim, as mulheres que não podiam/queriam ter filhos eram consideradas incapazes física, moral ou psiquicamente e acabariam experimentando algum tipo de insanidade ao longo de suas vidas.

O trato das doenças também tinha abordagens distintas. Diagnósticos para sintomas idênticos eram totalmente diferentes para homens e mulheres. A análise médica sobre a mulher tinha como base um órgão – o útero – a partir do pressuposto de que qualquer desequilíbrio nesse órgão poderia provocar reações patológicas em outras áreas do corpo.

Os textos produzidos por médicos deixam entrever uma prática ginecológica punitiva. As enfermidades femininas eram vistas como sinônimo de fragilidade ou incapacidade do exercício de suas funções como mãe e esposa.

Encontramos também a ideia de que a mulher, ao realizar esforço mental excessivo, correria o risco de provocar uma modificação na natureza de seu temperamento, pois é feita para a família e não pode se envolver em estudos intensivos, como faz o homem. Se o fizesse, todas as energias que deveriam ser empregadas no amadurecimento do aparelho reprodutor seriam desviadas para o cérebro. Nada diferente, inclusive, de alguns discursos propagados eventualmente ainda hoje que reduzem a mulher a sua capacidade reprodutiva de gestar e cuidar.

A grande questão aqui é que, de uma forma ou de outra, o útero tem sido visto como um espaço a ser preenchido com expectativas sociais e culturais em cima das mulheres. Para aquelas que não o aceitam nesta perspectiva de “cômodo” a única solução seria removê-lo? Parece que é realmente mais fácil do que mudar toda a visão que nossa sociedade tem da mulher, infelizmente. Mas quem se beneficia disso e quem se prejudica com essa atitude?

Uma parte do corpo médico afirma que a menstruação não é natural, que o natural seria estar grávida ou amamentando, isso porque, se as mulheres se reproduzissem da maneira que a natureza “quer”, ficariam grávidas de dois em dois anos e, assim, não menstruariam.

Como se já não bastasse ouvir isso em consultórios, existe um livro – Menstruação, a sangria inútil – cuja autoria é de um homem, que defende essa ideia. Ele fala que a menstruação é um fenômeno que não deveria acontecer, que menstruar é um efeito da civilização moderna e que afasta a mulher de sua função – como se a função da mulher fosse a reprodução (alô, Gilead).

Para ele, que defende o uso de contraceptivos hormonais, não menstruar tira um inconveniente que deixa a mulher mais competitiva no mercado. Acabo me perguntando o que estamos dispostas a fazer para sustentar um sistema falido em sua essência, um sistema que afirma que, para mantê-lo, temos que sacrificar nossa organicidade.

Pensar na menstruação como um indicador de saúde, ao contrário do que se tem propagado, é ganhar uma oportunidade simples e gratuita de autogestão.

Mas, como sabemos, tudo que é exclusivo da mulher, na história ocidental, tem sido associado a algo negativo, então ter útero é ruim, menstruar é ruim… e assim vamos assimilando o que a sociedade diz sobre o que é ser mulher. Fomos levadas a acreditar que nosso corpo precisa de controle e dominação.

Acreditar na inutilidade da menstruação reforça a visão do papel de reprodutora da mulher, resume a existência da mulher a uma visão utilitarista. E sabemos bem todas as prisões que vêm junto com essas crenças de uma sociedade patriarcal.

Segundo estatísticas do SUS, a histerectomia é a segunda cirurgia mais frequente entre as mulheres em idade reprodutiva. Estima-se que entre 200 e 300 mil mulheres retirem o útero por ano. Mas a histerectomia deveria ser a última solução, não a primeira. Muitas dessas cirurgias sequer são necessárias.

Deveríamos estimular as mulheres a exercerem seu direito de opção por novas técnicas e descobertas científicas e não pela retirada de um órgão como solução para TODOS os problemas.

É preciso questionar, ainda, como as mulheres que possuem útero e não querem ser mães percebem esse órgão em suas vidas? Será que elas acreditam que não precisam dele apenas porque não querem gerar um filho? Será que muitas mulheres se sentiriam mais livres para carregar seu útero se não fosse todo o fardo que carregam por serem mulheres?

A ideia de “função” do útero construída na modernidade assume uma forma que intenciona estabelecer uma organização social conveniente aos arranjos patriarcais, que precisam das mulheres ocupadas com a (re)produção de pessoas. Essa redução capitalista da maternidade aproximou as categorias “mãe” e “mulher” ao ponto de, muitas vezes, serem entendidas como sinônimos.

É necessário pensar de que maneira as representações sociais no contexto de opressão e isolamento se estruturam a fim de restringir o corpo da mulher a determinados lugares a partir de uma “patologização” do corpo e do comportamento feminino. Pensar na interrupção de um corpo e na existência dele é necessariamente pensar sobre o porquê, por quem e de que forma esse corpo é interrompido. 

REFERENCIAL TEÓRICO: 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

FERNANDES, Maria. O corpo e a construção das desigualdades de gênero pela ciência. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, p. 1051-1065, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312009000400008.  Acesso em: 20 set. 2022.

STRÖMQUIST, Liv. A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado. São Paulo: Quadrinhos da Cia, 2018.

UENO, Joji. Histerectomia é o último recurso no tratamento dos miomas uterinos. Minha Vida Saúde, Brasil, 23 jul. 2009. Disponível em: https://www.minhavida.com.br/materias/materia-4288.  Acesso em: 20 set. 2022.

Ilustração de Julia Vargas

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