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Duhigó: artista indígena guardiã da cultura Tukano

Duhigó (primogênita, na língua Tukano), nasceu na comunidade Pari Cachocheira, município de São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, Amazonas. Três das obras da artista estão na Mandala Lunar 2024:  “Autorretrato de Duhigó”, “Yepá Masõ” e “Mulher Guariba”.

A artista, hoje com 67 anos, teve sua jornada marcada por deslocamentos geográficos e culturais. Já viveu em São Gabriel da Cachoeira, Manaus, Belém, Goiás, Conceição do Araguaia, Santarém e Porto Velho, onde permaneceu por 22 anos. 

No entanto, sua entrada no universo das artes aconteceu em 2002, quando, aos 48 anos, decidiu participar de um curso no Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia (IDC), em Manaus.

“Como eu falei para você, deixei as coisas ruins acontecendo, mas nunca deixei a escola de artes. Sempre lutando. Nem eu mesma entendo o porquê”, disse a artista em entrevista à antropóloga Damiana Bregalda, colaboradora da Mandala Lunar.

A narrativa artística de Duhigó está enraizada em suas experiências vividas e se revela como um diálogo entre passado e presente, entre mito e filosofia, proporcionando uma janela única para as memórias que moldaram sua expressão artística.

Na obra “Nepũ Arquepũ” (2019), a artista retrata a cena de um parto em uma antiga maloca tukano. Duhigó narra que, por volta dos 7 anos, em uma tarde na comunidade São Francisco, situada às margens do rio Tiquié, testemunhou o nascimento de um de seus irmãos — mesmo que para os Tukanos o parto seja restrito a pessoas devidamente preparadas, como parteiras e benzedores.

“Naquele tempo, criança não poderia participar [dos partos], somente adulto. Nem sequer falavam o que estava acontecendo (…) Minha avó disse pra eu levar meus outros irmãos para tomar banho. Quando eu cheguei, minha vó já não deixou a gente passar, “não vai pra lá”. Na direção da porta da casa, ficava um pé de Cuieiro. Eu vi aquele Cuieiro balançando. Aí quando eu vi, minha mãe estava agarrada no pé de Cuieiro. Quer dizer, ela estava tendo um bebê, lá em cima”, disse a artista.

Após o nascimento, sua mãe e os acompanhantes foram até a maloca para ficarem próximos ao fogo. A mãe, segurando o bebê nos braços, se sentou sobre cinzas frias e benzidas para permitir o escoamento da placenta e do líquido amniótico.

Só depois desse ritual, ela se deitou na rede. A pintura “Nepũ Arquepũ” retrata a mãe de Duhigó duas vezes: sobre as cinzas, ao lado de uma parteira, e na rede, junto a um benzedor, que é o pai de Duhigó. Ao fundo, fora da maloca, está o pé de cuieira, onde aconteceu o início do trabalho de parto presenciado pela artista.

“Nepũ Arquepũ”

O termo Tukano, além de remeter a uma etnia específica — da qual Duhigó faz parte — é usado para designar outros 16 grupos. Eles se distinguem por aspectos linguísticos e culturais.

São, ao todo, 17 etnias que fazem parte da família linguística “tukano oriental” e que estão localizados no noroeste amazônico do Brasil e da Colômbia, às margens do Rio Tiquié.

Assim como o ritual do parto, o evento da primeira menstruação é um marco importante para a etnia de Duhigó. Durante esse período, a mulher é submetida a restrições alimentares e a práticas, como evitar a exposição ao sol.

Essas restrições são para garantir o bem-estar da mulher e sua preparação para a vida adulta. Nesse período, a mãe desempenha um papel fundamental na orientação da filha, fornecendo conhecimentos essenciais sobre a vida, incluindo habilidades práticas como tecelagem e preparo de alimentos.

O resguardo da primeira menstruação é seguido por um período de aprendizado e preparação, durante o qual a mulher é orientada sobre como viver, realizar pinturas corporais, tecer, fazer beiju e outras atividades importantes. A ideia é que, ao final desse período, a mulher esteja pronta para se casar.

Foi a partir dessa obra, Nepũ Arquepũ, que a artista se tornou a primeira mulher indígena do Amazonas a ter um quadro no acervo do Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand).

Até agora, são 18 anos de dedicação contínua às criações artísticas. A jornada artística de Duhigó é um testemunho da preservação cultural e da conexão vital entre arte, identidade e meio ambiente. Suas obras não apenas refletem sua trajetória, mas também celebram a riqueza cultural dos povos indígenas.

“Não tem quem fale, as pessoas velhas já morreram. E esses conhecimentos estão se acabando com as pessoas que estão morrendo. Como não foram escritos, hoje em dia, ninguém sabe”, diz ela.

Mulher Guariba

Título: Mulher Guariba | Artista: Duhigó | Etnia: Tukano | Técnica: Acrílica sobre tela | Tamanho: 100 cm x 80 cm | Ano: 2019

Segundo Duhigó, a maioria das obras de arte que produziu faz parte da memória de uma viagem realizada na infância pelo rio Apapóris, quando tinha por volta de 8 a 10 anos.

Foi nessa viagem que Duhigó se deparou com a Pedra da Mulher Guariba, uma representação mitológica da filha de um macaco Guariba que, por amar alguém de outro grupo indígena, foi fatiada e transformada em pedra.

Duhigó, sensível às camadas emocionais do mito, recriou essa figura em sua obra “Mulher Guariba”. Na pintura, a mulher ressurge inteira, banhada nas águas de uma cachoeira da região mitológica, adornada com grafismos dos bastões de proteção dos Tukano.

A obra transcende o mito e se torna também autobiográfica no momento em que Duhigó reconhece paralelos entre a trajetória da mulher representada e suas próprias fases de dor, separação e reconstrução, alinhadas ao período de produção da obra. 

A artista enfrentou problemas de saúde com seus filhos e a perda trágica de uma filha, além de pressão psicológica e financeira. Ela conta para Damiana que durante anos trabalhou em “casas de família” e que em determinado momento precisou escolher entre o trabalho e a formação como artista. Nas suas palavras:

“Chegou um dia que a patroa chegou para mim e disse para eu escolher o trabalho ou o curso de artes. Aí eu fiquei pensando né, na hora do almoço lá, tinha muita louça lá, muita coisa mesmo. Aí eu olhei para ela e disse, “eu acho que vou ficar lá no meu curso mesmo”. Aí nessa hora, eu tirei o avental que estava usando, dei para ela e vim me embora (…) Aí fiquei pensando, eu não sei o que passou na minha cabeça para eu fazer tudo isso e ficar nesse curso de artes. Passei muita dificuldade. Naquele tempo não tinha dinheiro nem para comer e nem para pegar o ônibus.”

Na difícil escolha posta a Duhigó, o caminho das artes prevaleceu. Ela relata que nem a ela é compreensível como, diante de tantos desafios, pôde permanecer criando.

A força que move sua escolha pela arte e que a faz mover pelas telas surpreendeu a artista quando se deparou com seus trabalhos expostos na Galeria do Largo, em Manaus, em outubro de 2023. Duhigó contou que por um momento não acreditou que ela havia pintado sozinha cada uma das telas da exposição Miriã Sutiri.

Miriã Sutiri – Máscaras de Pássaros

Um dos pontos marcantes da carreira de Duhigó foi sua primeira exposição individual em Manaus, intitulada “Miriã Sutiri — Máscaras de Pássaros”. Duhigó trouxe à vida um grupo de 12 pessoas-pássaros, recriando elementos culturais inspirados em mitos e histórias contadas por seu avô. 

Durante a infância da artista, seus pais, jovens e alunos dos padres, frequentavam as celebrações de missas em Paricachoeira. Devido à distância entre o local de moradia e o das celebrações, Duhigó era deixada aos cuidados dos avós.

Durante esses momentos, os mais velhos compartilhavam histórias — embora não diretamente com ela, mas com outros presentes. Sentada ao lado do avô, na fogueira, Duhigó absorvia as narrativas.

“Meu avô contava que tinha um grupo de gente, que essas pessoas que se chamavam “Miriã Porã Mahsã”. Era um grupo. (…) esses se transformavam, eles vestiam as máscaras para ninguém reconhecer eles”, conta Duhigó.

A artista se tornou uma guardiã da cultura, trazendo à tona objetos, práticas e conhecimentos que até então não tinham sido registrados, sobretudo através das artes visuais e por uma mulher indígena. Nesse sentido, seu trabalho não é apenas artístico; é um ato de preservação cultural, uma tentativa de manter viva uma herança rica e valiosa do Povo Tukano.

Imagens da exposição “Miriã Sutiri – Máscaras de Pássaros”/ Foto: Damiana Bregalda

Autorretrato de Duhigó

Título: Autorretrato de Duhigó | Artista: Duhigó | Etnia: Tukano | Técnica: Acrílica sobre tela | Tamanho: 200 cm x 120 cm | Ano: 2022

O “Autorretrato de Duhigó” é uma obra que retrata a artista Duhigó em corpo inteiro, imersa em águas que evocam paralelamente uma cachoeira e um rio, cercada pela floresta amazônica. A obra é uma representação visual da conexão de Duhigó com suas raízes, sua mitologia e suas experiências de vida na Amazônia.

A artista utiliza grafismos em seu rosto e corpo. A pintura de rosto é uma tradição transmitida pela linha materna de Duhigó (de etnia Desana), utilizada em festas e momentos sagrados.

O vestuário da obra consiste em um vestido de tururi, entrecasca de uma árvore amazônica, pintado com grafismos tukano em referência à etnia da artista. Os grafismos incluem padrões usados na cestaria, em bancos e em bastões de dança, além de constelações e da cobra grande. 

Duhigó também incorpora um grafismo pessoal inspirado na mitologia tukano da Wataparó, uma borboleta azul e preta associada a uma entidade da mata.

O fundo da obra remete à infância de Duhigó, quando viajou de canoa com seus pais pelo rio Umarí até a Colômbia, em busca de parentes da mãe. A cena retrata a paisagem e o relevo da floresta que ela testemunhou durante essa jornada.

Yepá Masõ

Título: Yepá Masõ | Artista: Duhigó | Etnia: Tukano | Técnica: Acrílica sobre tela | Tamanho: 120 cm x 90 cm | Ano: 2019

Na obra “Yepá Masõ”, Duhigó encapsula uma interpretação íntima da criadora do mundo na cosmovisão Tukano. 

A artista  descreve um passado em que existia a “gente pedra”, contexto em que as mulheres e antes delas, Yepá, a originadora de tudo, detinham o poder. Inicialmente, Yepa era apenas um som no vazio, mas materializou-se, desceu do espaço abstrato e apresentou-se na forma representada na obra: cabelos de vento, rosto de pedra, corpo de águas e vegetação, adornado com os grafismos ancestrais dos Tukano. 

Conforme relata Duhigó, “O mito dos tukano conta que Yepá Masõ, no tempo em que foi criado o mundo, vivia no espaço.” Na narrativa visual, ela emerge das fendas das pedras gigantes, abundantes no relevo do Alto Rio Negro, a região de nascimento da artista e berço da cultura Tukano. 

Uma observação intrigante que ressalta a força do feminino nas criações de Duhigó é o detalhe na parte inferior do corpo da Yepá. Ali, encontra-se uma pequena abertura vermelha, que se assemelha a uma vagina e que também evoca uma fenda de lava. Ambas simbolizam a criadora que faz emergir e brotar de si o universo.

Duhigó junto à obra “Yepá Masõ”, à esquerda, e à “Mulher Guariba”, à direita. / Fonte: Manaus Amazônia – Galeria de Arte.

A arte como transformação

Os mitos tukano de origem do mundo e da humanidade são marcados por eventos de transformação e pela agência de seres outros-que-humanos.  

Na obra “Mulher Guariba”, Duhigó expressa o processo de transformação da filha do macaco Guariba em pedra. Pedras que naquele tempo eram maleáveis, fazendo com que nelas e na paisagem do Rio Negro estejam inscritas memórias de episódios diversos da mitologia dos povos indígenas da região. 

Operando também na lógica da transformação, e não apenas na da representação, Duhigó retrata nessa mesma obra a mulher Guariba em posição ereta, uma narrativa que confere vitalidade e força tanto a essa personagem feminina mitológica quanto a ela mesma, artista-mulher. 

Na entrevista realizada com Duhigó, fica posto seu desejo de que sua arte possa contribuir para vitalizar povos e paisagens cujas vidas vêm sendo há séculos ameaçadas. Que fertilize e seja semente em terrenos devastados, que possibilite reflorestar modos de sentir, pensar, habitar e produzir mundo.

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2 Comentários

  1. Thayná Paixão

    27 de dezembro de 2023

    Nos meus sonhos, sempre estou conectada aos povos indígenas. Sempre há uma mulher indígena ao meu lado. Já acompanhei partos, defendi a arte dentro de uma galeria de artes indígena e tantas outras coisas.

  2. liamaranhao

    3 de janeiro de 2024

    Que lindas histórias! Na infância vivi em S.Gabriel da Cachoeira e tive o privilégio de conhecer um pouquinho da cultura indígena, pela qual sou apaixonada.

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