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Patologizando a mulher: o corpo que abriga a loucura

por Laísla Dantas Chagas

Sobre o corpo, recaem as mais diversas formas de controle social, visto que a disciplinarização e o controle são retratados através da retenção literal dos corpos, mas não exclusivamente, pois também existe todo um discurso moral que aproxima, ou não, tais corpos de uma suposta normalidade. Tais controles agem a partir de normas de comportamentos e “vigilância”, a fim de dirimir suas potencialidades pela sujeição e pelo aperfeiçoamento – domesticando-os.

O lugar desse corpo patologizado, a partir da obra de Foucault, é um lugar que reflete as formas de poder que a Modernidade consagrou. Para ele, a Modernidade inaugura uma sociedade disciplinar, que busca a supressão do indivíduo a partir de sua adequação, assim vai dispor de diagnósticos e patologias como um mecanismo de controle dos corpos e comportamentos, viabilizando a interrupção de determinados corpos de acordo com a conveniência social do contexto no qual ele está inserido.

Além disso, o pressuposto fundamental do paradigma moderno racional é o conhecimento como produto da relação entre sujeito e objeto. Diante deste prisma, o paradigma omite, ainda, toda referência a “sujeitos” fora do contexto branco androcêntrico europeu, pois as diferenças eram admitidas com conotação hierárquica, na medida em que somente a cultura masculinista europeia era racional e poderia conter “sujeitos”, sendo assim, o que fosse “desviante” não seria considerado racional, não podendo almejar, portanto, condição de “sujeito”, visto que só poderia ser “objeto” de estudo e de normatização.

Tais dicotomias criadas pelo pensamento moderno, que separa as instâncias sujeito-objeto, natureza-cultura, também promovem, a partir desses binarismos, pares de opostos que são constantemente hierarquizados; o homem se validaria na negativação da mulher, por exemplo. Ou seja, a existência da categoria mulher, englobando comportamentos tidos como “essenciais”, tem sido instrumentalizada para afirmar o homem como o sujeito ideal. Podemos, a partir dessa análise, entender por que, num mundo onde a norma é masculinista, onde as estruturas são patriarcais, o corpo de maior regulação social é o feminino, o que desviaria biologicamente da régua.

Ainda, o olhar sobre o corpo feminino cria e reforça uma imagem estereotipada da mulher, seu corpo e seus comportamentos são alvo de contenções e restrições, a expectativa criada sobre o corpo feminino e essa personagem ideal criada pelo patriarcado é de uma corporalidade delicada e dedicada, de um comportamento polido, cuja disposição é agradar.

É pensando nessa construção de subjetividades suscitadas pelo aparato patriarcal, que tomamos a reflexão da interrupção, material e simbólica, do corpo feminino. Essa perspectiva tem, como consequência, uma dinâmica binária de perfeição ou imperfeição, que sustenta a criação de uma imagem que contrapõe a imagem de uma mulher ideal, muitas vezes chamada de “louca”.

É importante destacar que o termo loucura traz consigo a historicidade pela qual o termo perpassa. Sua compreensão depende do contexto no qual está inserido. Em A história da loucura, o filósofo francês Michel Foucault explica que a experiência do sofrimento psíquico foi encarada de diversas formas ao longo da História do mundo ocidental. A própria definição do que era loucura foi se transfigurando conforme a época histórica. Na Idade Média, por exemplo, os sintomas de alucinação foram atrelados à possessão demoníaca e a imputação recaia principalmente sobre as mulheres, que eram queimadas em fogueiras.

A partir do século XVII, a loucura passou a ser percebida a partir de uma conexão entre a obrigação moral e a lei civil; uma espécie de “mediação moral” estabelecida por uma sociedade na qual o trabalho e a norma assumiram o significado de orientação e disciplina tendo em vista o culto à Razão e às regras morais da sociedade. Junção que funcionava a partir de formas autoritárias de coação e resultava na internação como única alternativa viável, assim foram estabelecidas as casas para abrigar os “insensatos”. A existência da loucura no tecido social, pela análise foucaultiana, passa necessariamente pela experiência do trabalho e de sua relação com a produtividade e o ócio.

O surgimento da psiquiatria afirmou ainda mais o discurso da “racionalidade”, que se sobrepunha ao discurso mítico-religioso. A “balança moral” estabelecida a partir de uma aliança da medicina com a sociedade patologizou corpos desviantes de modo a estruturar uma lógica que viabilizasse um destino único para a integração moral e política de um sujeito. Além disso, a medicina, por meio de seus saberes particulares ou auxiliares, a exemplo da anatomia, da biologia e da psiquiatria, começou a fornecer os argumentos necessários à transposição das demarcações morais para o mundo da corporalidade, garantindo novas justificativas para a contínua percepção hierárquica dos seres humanos. E, assim, a voz das mulheres, já tão emudecidas, foi o principal alvo.

As particularidades biológicas diagnosticadas pelos cientistas passaram a oferecer autoridade intelectual sobre as supostas diferenças inatas entre homens e mulheres e a consequente necessidade de diferenciações sociais. Pois, se a natureza já se tinha encarregado de postular tal divisão, caberia a sociedade respeitá-la e promover um comportamento adequado. Essa maneira de pensar o corpo feminino se deve a uma alienação da ciência e da produção do conhecimento científico ligada a valores masculinos. A doença passa a servir como uma metáfora. A saúde e a doença costumavam ser julgamentos subjetivos que a sociedade patriarcal criou para seus próprios fins. A própria loucura, cuja definição varia ao longo dos séculos, ganhou o rosto de uma mulher rebelde, visto que muitas manifestações de transgressões sociais das mulheres foram (e são) tidas como sintoma. A mulher que rejeitava o rótulo social, que não objetivava se casar. A mulher que amava outras mulheres ou aquela que não queria ser mãe. Mulheres eram internadas em manicômios por gostar de sexo, não obedecer ao marido, não querer ter filhos. Jovens foram internadas por serem consideradas desobedientes ou contestadoras, por falarem muito alto ou por não terem religião. Mulheres foram internadas por terem engravidado de homens casados, homens casados que internavam as esposas que não mais desejavam etc. A maior parte dos casos médicos tratados e relatados na literatura entre o final do século XVIII e o século XIX eram femininos.

Tal questão consiste, é claro, em estereótipos e estigmas criados e reproduzidos com base em concepções herdadas culturalmente, que, a partir de um senso comum, guiam as representações dos corpos e dos espaços para um foco quase exclusivamente binário; centrado sob uma dinâmica de doença/cura, que acaba por afirmar e viabilizar a intervenção como única solução possível ao invés de optar pelo ajuste social das diferenças existentes entre os corpos e suas respectivas necessidades dentro dos espaços públicos. Essa dicotomia acaba criando um espaço cultural de divisão entre os corpos, no qual um lado do binarismo define necessariamente o outro, e ambos “funcionam” juntos, como figuras opostas que legitimam a balança dos sistemas de poderes social, econômico e político.

Há muito as mulheres vêm sendo taxadas de doentes como um meio de sujeitá-las ao controle social, em que desejos, impulsos e a própria fisiologia da mulher saudável – sua organicidade ou ciclicidade – são propagados como problemas patológicos. Nas tradições do pensamento ocidental, “o homem representa a integridade, força e saúde. A mulher seria um homem fraco e incompleto”. Ideologia que enfraquece e desacredita as mulheres, principalmente as de classe média, cuja instrução, lazer e isenção de restrições materiais poderiam levá-las longe demais. É muito mais seguro para a ordem patriarcal permitir que mulheres insatisfeitas exprimam suas queixas através de doenças psicossomáticas do que vê-las protestando por direitos legais e econômicos. E assim, cada vez mais, um discurso natural-biologizante impõe às mulheres o que a sociedade espera delas.

Os aparatos estruturais do patriarcado contribuíram para a condenação, opressão e, muitas vezes, para a interrupção destes corpos. Ainda hoje, as mulheres são a maioria dos pacientes diagnosticados com doenças mentais. Alguns transtornos, inclusive, carregam estereótipos de um suposto comportamento feminino. Diagnosticam as mulheres a partir da forma que a sociedade ensinou que elas devem se comportar e ainda relacionam o sofrimento feminino apostando em justificativas simples, ancoradas em valores puramente biológicos.

A explicação padrão é a de que, por sofrerem mais com variações hormonais, as mulheres acabariam mais suscetíveis a episódios depressivos. Culpam-se os hormônios e ignora-se o machismo estrutural em nossa sociedade. Para a psicoterapeuta Phyllis Chesler, autora do livro Women and madness, a própria estrutura patriarcal faz com que as mulheres adoeçam e estejam mais vulneráveis a doenças mentais. São elas que sofrem mais de depressão e ansiedade e são consideradas mais suscetíveis a tais transtornos, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mulheres e homens ainda têm diferentes níveis de controle sobre os determinantes da saúde mental, como acesso a recursos, status, papéis, opções e tratamentos. Visto que o gênero, em nossa sociedade desigual, define a suscetibilidade e exposição a uma série de riscos à saúde mental.

Claro que as flutuações hormonais também têm um impacto significativo em nossa saúde mental ao longo da vida. O estrogênio, hormônio feminino, tem vários papéis-chave no cérebro e fornece um efeito protetor contra doenças mentais. Quando os níveis estão mais baixos, antes ou perto da menopausa, algumas mulheres podem desenvolver depressão, bem como ansiedade. Porém os transtornos causados por hormônios, incluindo a depressão relacionada à menopausa, assim como o transtorno disfórico pré-menstrual (depressão na semana anterior à menstruação) e a depressão pós-parto, são mal compreendidas e tratadas. Isso prejudica as mulheres.

Fatores fisiológicos, psicológicos e sociais atuam todos juntos, como já conversamos no texto Significados incorporados: o corpo como instrumento aqui no blog. Devemos reconhecer isso e adotar uma abordagem mais voltada à perspectiva de gênero para tratar homens e mulheres com problemas de saúde mental; uma abordagem que integre uma série de fatores biológicos com comportamentos particulares e eventos externos para proporcionar melhores resultados, pois existe uma relação intrínseca entre a saúde mental e os valores sociais sobre os papéis que cada sexo deve desempenhar na sociedade. Isso porque “os corpos não operam no mundo social como coisas ‘em si mesmas’, ao contrário, a sua capacidade de operar é mediada pela cultura, ou seja, apesar de todos os seres humanos terem corpos, estes são representados, usados, controlados e concebidos de acordo com a cultura”.

Temas como a patologização da mulher não avançam suficientemente se só levarmos em consideração o contexto individual, a análise deve ser feita dentro de uma ordem coletiva. As inúmeras teorias sobre a psique feminina enfatizaram a psicologia individual em detrimento do coletivo e da cultura, observando a adequação das mulheres aos papéis de gênero para ver como elas exprimem um conflito da sociedade.

Há uma convicção em massa do fracasso feminino, um fracasso definido por estar implícito na própria condição feminina. Além disso, o corpo da mulher é entendido como um lugar confuso e difuso – não parece pertencer a elas próprias. Há de se considerar como as representações culturais desse ‘ser uma mulher louca’ se estruturam no tecido social de forma a restringir o corpo da mulher a determinados lugares.

REFERENCIAL TEÓRICO

BIRMAN, Joel. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978.

FERNANDES, Maria. O corpo e a construção das desigualdades de gênero pela ciência. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, p. 1051-1065, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73312009000400008. Acesso em: 28 set. 2022

FOUCAULT, Michel. A história da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.

GUIMARÃES, Fabiane. Mulheres e depressão: Quando a loucura é filha do machismo. Revista Azmina. Brasil, 21 ago. 2018. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/quando-a-loucura-e-filha-do-machismo/. Acesso em: 28 set. 2022

MACHADO, Marisia Pereira Ribeiro. Retórica visual da loucura: corpos interditados e espaços de interdição em “Girl, Interrupted” (1999). 2019. 89 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2019.ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.

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