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Existe um inconsciente coletivo nos sonhos?

Todas as noites, ao adormecermos, adentramos um território onde o tempo é outro, a linguagem é simbólica e as regras da vigília não se aplicam. Sonhar é um ato profundamente humano e, ao mesmo tempo, profundamente universal. Mas será que, quando sonhamos, estamos sós? Ou nossos sonhos estariam conectados a algo maior, mais antigo e compartilhado?

O chamado noturno da consciência partilhada

Essa pergunta nos conduz ao centro de uma ideia presente nos escritos de Carl Jung: a noção de um inconsciente coletivo nos sonhos. Para além do que é pessoal, nossos sonhos podem carregar símbolos, imagens e narrativas herdadas — não apenas da nossa história pessoal, mas também da nossa linhagem, cultura e ancestralidade.

A proposta do inconsciente coletivo, tal como formulada por Jung, aponta para a existência de arquétipos e símbolos universais que emergem nos sonhos, compartilhados por toda a humanidade. Essa ideia encontra ressonância em diversas culturas e também em estudos contemporâneos, como os de Sidarta Ribeiro. Já Hanna Limulja, ao explorar os sonhos na cosmologia Yanomami, revela sua dimensão intersubjetiva — em que sonhar é uma experiência relacional e compartilhada com outros humanos, espíritos e a floresta.

O inconsciente coletivo: arquétipos e sonhos compartilhados

Carl Jung introduziu o conceito de inconsciente coletivo para descrever uma camada profunda da psique humana composta por imagens e padrões universais — os arquétipos. Essas figuras simbólicas, como a Mãe, o Herói ou o Sábio, emergem nos sonhos independentemente da história pessoal, sugerindo uma espécie de memória coletiva da humanidade. Jung observou que muitos sonhos apresentavam imagens e temas que não poderiam ser explicados apenas por experiências pessoais, indicando a presença de um conteúdo compartilhado que transcende o indivíduo.

Sidarta Ribeiro: a ciência dos sonhos e a consciência coletiva

Em O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro investiga o papel dos sonhos na evolução da mente humana. Ele propõe que sonhar é uma forma ancestral de ensaio mental, uma espécie de simulador de experiências que permite ao cérebro antecipar problemas e buscar soluções. Para além de sua função adaptativa, os sonhos, segundo Sidarta, também consolidam memórias e ajudam na aprendizagem.

Em Sonho Manifesto, o autor aprofunda a dimensão política dos sonhos, sugerindo que eles podem ser usados como ferramentas de resistência, imaginação e transformação social. Nessa perspectiva, os sonhos não pertencem apenas ao indivíduo, mas dialogam com o mundo, revelando anseios coletivos e oferecendo vislumbres de futuros possíveis.

O desejo dos outros: sonhos como encontros entre mundos

A antropóloga Hanna Limulja, em O Desejo dos Outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami, apresenta uma perspectiva profundamente distinta sobre o mundo onírico, enraizada nos modos de vida e na visão de mundo desse povo indígena. Para os Yanomami, os sonhos não são meras narrativas internas, mas eventos intersubjetivos: comunicações com espíritos, com outros humanos e com a floresta. Os xamãs, por exemplo, se relacionam com os sonhos para navegar entre realidades e obter conhecimentos que beneficiam toda a comunidade.

Essa perspectiva evidencia como o individual e o coletivo se entrelaçam nos sonhos, revelando sua natureza profundamente relacional e intersubjetiva, rompendo com a concepção ocidental do sonho como experiência isolada. Para os xamãs yanomami, sonhar é um canal de escuta e de ação: uma forma de cura, orientação e decisão comunitária. O sonho individual é entendido como uma responsabilidade coletiva — ele informa o grupo, influencia rituais e orienta o agir social.

Sonhar como ato político e coletivo

Os sonhos, portanto, não são apenas experiências individuais, mas também políticas e coletivas. Têm o poder de revelar verdades ocultas, de conectar indivíduos a uma consciência mais ampla e de inspirar transformações sociais. Ao sonharmos, acessamos não apenas nossos desejos e medos, mas também os anseios e desafios de nossa comunidade e, talvez,  da própria humanidade. Reconhecer essa dimensão compartilhada dos sonhos é abrir espaço para escuta, diálogo e mudança.

O inconsciente coletivo vive em nossos sonhos

A existência de um inconsciente coletivo nos sonhos é uma ideia que se sustenta tanto em teorias psicológicas quanto em práticas culturais diversas. Os estudos de Jung, Sidarta Ribeiro e Limulja mostram que os sonhos são pontes entre o individual e o coletivo, entre o consciente e o inconsciente, entre o real e o simbólico.

Eles se manifestam nos símbolos que compartilham forma mesmo entre culturas distintas, nas histórias que parecemos reviver sem nunca termos vivido e nas mensagens que atravessam tempos e territórios.

Seja pela ótica de Jung, pela neurociência de Sidarta Ribeiro, ou pela cosmologia Yanomami apresentada por Hanna Limulja, os sonhos nos falam em uma linguagem compartilhada — uma linguagem da alma humana, que conecta o que é pessoal e o que é ancestral, que é interno ao que é coletivo.

Ao nos aproximarmos dos nossos sonhos com essa consciência, abrimos espaço para uma compreensão mais profunda de nós mesmos e do mundo que habitamos. Sonhar é, assim, um ato de conexão, de resistência e de esperança.

Que possamos continuar sonhando. E que nossos sonhos, entrelaçados, inspirem um mundo mais conectado, consciente e poético.

Referências bibliográficas

Jung, C. G. O Homem e Seus Símbolos. Nova Fronteira, 1964.
Ribeiro, Sidarta. O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho. Companhia das Letras, 2019.
Ribeiro, Sidarta. Sonho Manifesto. Companhia das Letras, 2021.
Limulja, Hanna. O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami. Editora UBU, 2022.

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