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Sonhos que anunciam: o que o sonho sabe antes de nós?

É preciso secar os pesadelos ao sol.” 

Este antigo ditado alquímico ecoa como um sussurro antigo, uma sabedoria milenar sobre o que fazer com aquilo que emerge da noite: é também sobre a coragem da verdade, sobre trazer à luz. O que um sonho, mesmo o mais inquietante, pode nos dizer antes que algo aconteça? De onde vem essa sensação de que o sonho “sabia”? Ou ainda: como saber se o sonho é um aviso, é um desejo ou uma projeção dos nossos medos?

Há sonhos que parecem carregar em si um saber anterior ao tempo. Não falam do futuro em termos literais, mas anunciam — como uma fresta que se abre. São sonhos que não vêm para contar o que vai acontecer, mas para preparar o corpo, a alma, a escuta. Às vezes assustam, outras vezes nos envolvem em uma ternura inexplicável. Em todos os casos, parecem atravessados por algo que está a caminho.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, em O Oráculo da Noite, propõe que os sonhos funcionam como oráculos probabilísticos. Ao sonhar, o cérebro organiza informações do passado e do presente,  simulando futuros possíveis com base no que já percebeu — mesmo que conscientemente não saibamos. Não se trata de prever o futuro, mas de reconhecer algo que está sendo gestado no invisível. 

Os sonhos são radiografias de camadas invisíveis. Como um exame de imagem realizado para investigar um sintoma, os sonhos são como um retrato interno do que se passa entre as camadas do tempo.

Carl Gustav Jung compreendia os sonhos como produções simbólicas do inconsciente, com potencial de antecipar transformações internas e externas. Para ele, o inconsciente é um campo vivo, que se movimenta com autonomia e sabedoria. O sonho não prevê o que acontecerá, mas expressa simbolicamente aquilo que está amadurecendo, em tensão ou em emergência no mundo interno. 

Também a filósofa Vinciane Despret nos convida a ouvir outras formas de saber. Em vez de ver o futuro como algo fixo, ela propõe que algumas narrativas — como as dos sonhos — podem funcionar como “narrativas de antecipação”: não são previsões, mas formas de cuidar do porvir. Ao contar ou escrever um sonho, algo já se transforma. Sonhar, nesse sentido, é uma prática de atenção ao que ainda não tem nome.

Em meu Sonhário, encontro um relato de novembro de 2022. Este registro toca justamente no tema que refletimos aqui: “Sonhei que uma enorme enchente atingia Porto Alegre. A água chegava até os joelhos. Eu sentia meus pés e sapatos completamente encharcados. A sensação era incômoda, tanto que me acordou.”  Foi impactante perceber como este sonho se atualizou mais tarde, quando Porto Alegre foi alagada durante as enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Na manhã após  o sonho,  fiquei refletindo se trataria de algum infortúnio pessoal que estava a caminho. Somente dois anos mais tarde tive esta resposta: se tratava de um evento coletivo que estava por vir. 

Sonhos como esse não são raros. Muitas vezes, só os compreendemos depois — quando o acontecimento se dá, quando a palavra emerge, quando a dor encontra forma. Precisamos, às vezes, de um pouco de paciência com o sonho e o que ele nos aponta. Talvez possamos ficar com o problema um pouco mais, como nos ensina Donna Haraway.  Pois o sonho não está limitado ao tempo cronológico. Ele se desenha em outro tempo, onde o saber é imagem, não conclusão.

Em algumas culturas, o sonho é um lugar de orientação coletiva. Nas tradições ameríndias, o sonho é muitas vezes partilhado ao amanhecer, como parte do cuidado com a comunidade. O que nos parece “premonição” pode ser, para outros modos de vida, apenas uma escuta mais afiada do tempo em movimento.

E se nos propusermos a escutar os sonhos em comunidade e levar suas imagens e presságios a sério, o quanto poderíamos evitar de catástrofes e até mesmo prevenir acontecimentos desafortunados?  

“Secar os pesadelos ao sol” é mais do que um conselho poético. É uma prática, um trabalho com aquilo que se sonha. Contamos o sonho e o registramos, dando a ele sua devida importância. 

Mas e se não temos coragem de contar para ninguém?  Neste sentido podemos pensar nesta recomendação: a secagem, enquanto operação alquímica, é uma maneira de sublimar as imagens que porventura nos atormentam. Pode ser feito em solidão, mas na presença do sol. Em voz alta para o silêncio do deserto. 

Os sonhos que anunciam não vêm para assustar, mas para despertar. São convites sutis para a escuta. E mesmo os sonhos mais sombrios — aqueles que anunciam o fim de algo — podem ser acolhidos como presságios de passagem. 

Não é preciso saber com exatidão o que o sonho quer dizer. É suficiente escutá-lo. Escrevê-lo. Cuidar da imagem. Dar-lhe espaço. Sonhar é entrar em contato com uma linguagem que antecede o pensamento e que, por vezes, sabe antes de nós.

E se parte de nós já soubesse? E se o sonho fosse um sol secreto nascendo por dentro, antes da manhã?


Referências

  • Jung, Carl Gustav (2011). A Natureza da Psique. Editora Vozes.  
  • Ribeiro, Sidarta (2019). O oráculo da noite: A história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras. 
  • Despret, Vinciane (2022). Autobiografia de um polvo. Bazar do Tempo, 2022. 
  • Haraway, Donna  (2023). Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. São Paulo: n-1 edições, 2023. 

por Laura Pujol, psicoterapeuta e escritora

1 Comentários

  1. Rosita Enila de Souza Matos

    3 de junho de 2025

    Muito significativo e assertivo teu texto, No meu repertório de sonhos tenho muitas vezes a participação de pessoas ancestrais que sequer conheci, e que provocam em mim uma reflexão acerca da transmissão de toda uma cultura, saberes, informações, que teoricamente ficam com quem as detém e se perdem com nossa finitude, Morremos e levamos conosco tudo que experienciamos em vida! Mas em meus sonhos não é assim que acontece, tenho a todo momento “Insights “, informações que surgem “do nada”, é que muitas vezes orientam minhas ações de forma certeira como se já tivesse aprendido aquilo em algum lugar, e sempre relaciono com algum sonho que tive!
    Pra mim, os sonhos funcionam, também, como um canal de transmiçao da cultura ancestral, que não se perde com a morte, mas fica armazenada em algum compartimento celular secreto, e é transmitida através de nossos genes!
    É uma teoria minha que gosto muito de acreditar que seja verdadeira!
    Adorei teu texto e me senti a vontade para compartilhar contigo essa minha “viagem”! Te amo, bj

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