Você já se perguntou por que alguns sonhos ficam vívidos em nossa lembrança, enquanto outros se apagam com o tempo? Estudos em neurociência mostram que os sonhos desempenham um papel fundamental na consolidação da memória.
Durante o sono, especialmente na fase REM (sigla em inglês para Rapid Eye Movement, fase em que os olhos se movem rapidamente sob as pálpebras), o cérebro faz um “mutirão noturno”: revisita experiências do dia, seleciona o que vale guardar e transfere esses registros do hipocampo (armazenamento temporário) para o neocórtex (memória de longo prazo).
Sidarta Ribeiro, neurocientista e autor de O Oráculo da Noite, mostra que os sonhos não são manifestações aleatórias, mas um componente essencial no processo de consolidação da memória e da aprendizagem. Ele propõe que “os sonhos são uma simulação do futuro baseada no passado”, o que significa que o cérebro, ao sonhar, reorganiza experiências para antecipar situações e formular respostas possíveis.
A neurociência sustenta essa visão, demonstrando que durante o sono REM há uma intensa atividade no hipocampo, região cerebral associada à memória, facilitando a transferência de informações para o neocórtex, onde são armazenadas a longo prazo. Esse processo é essencial para a aprendizagem e a adaptação ao ambiente.
É durante o sono — nesse mergulho no oceano da inconsciência — que nosso cérebro atua como um artesão dedicado. As experiências do dia, os aprendizados, as emoções sentidas – tudo é revisitado, reorganizado e arquivado. Os sonhos, nesse contexto, atuam como um processador simbólico, fortalecendo as conexões neurais que sustentam nossas memórias e nos ajudam a integrar o passado, o presente e o que pode vir a ser. Na quietude do sono, nossa mente dança entre memórias, emoções e aprendizagens.
Desde muito antes da psicologia moderna ou da neurociência, povos ancestrais reconheciam nos sonhos uma linguagem sagrada: uma forma de diálogo entre o ser humano e os mundos espiritual, natural e coletivo. Enquanto a ciência contemporânea busca entender os sonhos através de imagens cerebrais e estudos clínicos, muitos saberes tradicionais os compreendem como espaço de encontro com os antepassados, com os espíritos da floresta, com os ciclos da Terra e com os desejos do coletivo.
Mas o papel dos sonhos vai além da consolidação do passado. Eles também são catalisadores para o futuro. Em Sonho Manifesto, Sidarta Ribeiro amplia nossa visão, mostrando como os sonhos podem ser caminhos para a construção de uma realidade mais consciente e alinhada com nossos propósitos. Não se trata apenas de recordar o que foi, mas de prever o que pode ser, de ensaiar novas possibilidades e de fortalecer o nosso “sonho manifesto” individual e coletivo.
Ao nos conectarmos com a linguagem sutil dos nossos sonhos, abrimos portais para a intuição e para a sabedoria inata do nosso corpo. O ato de registrar os sonhos, de conversar com suas imagens e símbolos, é um convite para essa comunicação interna.
Sonhar, recordar e refletir sobre esses sonhos é um gesto de amor e cuidado com o nosso ser. É reconhecer que a noite também nos ensina, que o descanso é necessário e que, ao sonhar nossa mente reorganiza memórias, fortalece aprendizados e nos orienta no processo contínuo de autoconhecimento, amadurecimento e transformação.
Imagine alguém que está aprendendo a tocar violão. Durante o dia, essa pessoa pratica acordes novos, sente dificuldade e até mesmo se frustra. À noite, sonha que está tocando as mesmas sequências, mas com facilidade e fluidez. Ao acordar, percebe uma melhora na coordenação e memorização dos acordes.
Durante o sono REM, o cérebro reproduz atividades recentes, fortalecendo as conexões neurais associadas à nova habilidade. Estudos mostram que pessoas que dormem bem após treinar uma tarefa têm desempenho melhor do que aquelas que não dormem.
Sidarta Ribeiro comenta isso em O Oráculo da Noite ao explicar como o cérebro “repete padrões de ativação durante o sono” para reforçar o aprendizado.
Uma mulher viveu um conflito com a mãe. À noite, sonha que revive esse momento, mas em outro cenário — talvez um jardim florido ou a casa da infância — e a conversa se desenrola de maneira mais suave e simbólica.
Memórias com carga emocional intensa tendem a ser mais fixadas. Como Freud já indicava, os sonhos são uma via de elaboração de desejos inconscientes. Sonhar permite “digerir” simbolicamente certas vivências, tornando-as mais compreensíveis e menos dolorosas.
Uma pessoa que se mudou de cidade há anos sonha, de repente, com a rua onde morava na infância. Ela vê detalhes que não se lembrava conscientemente: cheiro do portão de ferro, a cor das cortinas da vizinha, o som da bicicleta do amigo.
O sonho pode funcionar como uma ponte para memórias de longo prazo que não estão acessíveis durante a vigília.
Jung dizia que o inconsciente sabe o que o consciente ignora — e nos envia mensagens por meio de símbolos e imagens. Sonhar com o passado pode ser uma forma do inconsciente reorganizar narrativas internas.
Entre os Yanomami, como documenta Hanna Limulja em O desejo dos outros – Uma etnografia dos sonhos Yanomami, os sonhos têm função coletiva. Se alguém sonha com um espírito da floresta entristecido, isso pode ser interpretado como um sinal de que a comunidade precisa reavaliar seus hábitos.
Nesse contexto, os sonhos não organizam apenas a memória individual, mas também reafirmam os vínculos coletivos e os códigos culturais. São formas de manter viva a sabedoria ancestral e garantir o equilíbrio com a floresta e os seres invisíveis.
Limulja escreve que “os sonhos são a forma como o desejo do outro se inscreve no corpo do sonhador”. Ou seja, há uma memória coletiva sendo acessada e atualizada.
Integrando essas perspectivas, compreendemos que os sonhos não apenas auxiliam na consolidação da memória, mas também ampliam a consciência. Eles nos permitem revisitar experiências, ressignificar dores e acessar saberes ancestrais. Ao cultivar uma relação consciente com nossos sonhos, abrimos espaço para o autoconhecimento e a transformações internas profundas.
Práticas como manter um diário de sonhos, realizar rituais de intenção antes de dormir e compartilhar sonhos em círculos de confiança podem fortalecer essa conexão.