“Fazer sonhar. É um dos modos privilegiados pelos quais os mortos cuidam dos vivos, os colocam a serviço do enigma, fazem bifurcar o curso das suas ações, os incitam a romper com os hábitos, os obrigam a outra apreensão das coisas.” (Vinciane Despret, 2023, p. 67)
Há sonhos que não chegam como metáforas, mas como presenças. Sonhos em que pessoas falecidas ou pessoas com as quais já não nos relacionamos mais, retornam para nos dizer algo, ou apenas nos olhar em silêncio. O luto é, como diz Vinciane Despret em Um brinde aos mortos, um trabalho contínuo de relação.
Aqueles que já partiram, para ela, não estão exatamente ausentes: estão em outra forma de presença, uma que também nos escuta, que também sonha. E talvez seja nos sonhos que essa escuta se aprofunde. Uma escuta atravessada pela saudade, mas também pela possibilidade de uma outra forma de continuidade.
Quando sonhamos com quem partiu, o que está em jogo não é apenas a lembrança, mas uma forma do afeto resistir e persistir. É a tentativa de elaborar aquilo que ainda reverbera. Jung, em seus Sete Sermões aos Mortos, fala da morte como retorno: “os mortos voltaram da cidade de onde ninguém retorna”. Mas voltam, talvez, porque ainda temos algo a viver juntos. Os mortos retornam à casa, e precisamos falar com eles. Precisamos escutá-los. O sonho, para Jung, é o lugar do simbólico, mas também o espaço onde a psique se encontra com aquilo que não cessa de chamar.
O sonho, nesses casos, pode ser abrigo para o indizível. Pode ser despedida, reconciliação, presença simbólica ou só uma forma silenciosa de manter o elo. Muitas vezes não sabemos o que fazer com essas visitas: acordamos com o coração apertado, sem palavras, mas tocados.
Sonhar o luto é permitir que o tempo não se feche. É reconhecer que as relações não terminam com a morte, e que o sonho pode ser uma das formas mais íntimas de escutar o que ainda quer ser dito.
A proposta deste texto é abrir espaço para que possamos falar sobre isso. Para lembrar que o sonho é lugar de travessia, de sopro, de encontros impossíveis. E que talvez, nesse mundo de tanto fim, o sonho possa continuar sendo começo.
Como escreve Despret:
“Para cuidar de seus mortos, é preciso antes acreditar que eles ainda nos dizem algo.”
Os sonhos, nesse sentido, seriam espaços privilegiados dessa escuta. Vamos compreender melhor o que ela diz. Nas suas palavras, “se não cuidarmos dos mortos, eles morrem de fato”, e a nós, cabe a tarefa de oferecer-lhes “mais existência”.
Sonhar com quem se foi pode ser uma forma da saudade continuar sonhando conosco. Pode ser que os mortos também nos sonhem, como escreve Despret. E, nesse campo onírico, talvez possamos encontrar formas de reatar laços, pedir perdão, rir de novo, encostar o rosto.
Hanna Limulja, em O Desejo dos Outros, nos relembra que também podemos ser sonhados pelos nossos ancestrais que já faleceram. Somos sonhados, portanto, pela saudade que os falecidos têm de nós.
Há sonhos que nos põem diante dos que partiram como se a perda tivesse sido só um intervalo. Como se estivéssemos autorizadas, por uma fresta noturna, a reencontrar quem amamos e aprofundar nossa relação.
Para Conceição Evaristo, “nossos mortos não morrem, eles se encantam”. Essa perspectiva nos convida a pensar que o vínculo com os que se foram não é cortado, mas transformado. Encantar-se é entrar em outra forma de tempo, outra forma de linguagem. E o sonho talvez seja um dos poucos lugares em que esse encantamento se revela com nitidez.
Patricia Hill Collins, ao refletir sobre as epistemologias negras, lembra que a escuta sensível é um fundamento ético e político da experiência: “ouvir com o corpo”, “ouvir com o coração”. O sonho, nesse sentido, torna-se uma prática de saber. Um lugar onde a memória ancestral fala, mesmo quando a linguagem racional se esgota.
Nessa casa-sonho, talvez estejamos sempre voltando. O ritual não acontece no altar, mas no quarto escuro, onde uma presença se insinua entre imagens fragmentadas. Como escrever esse encontro? Como acolher essa visita sem nomear demais, sem querer conter?
Sonhar o luto é resistir à lógica da finitude absoluta. É permanecer em relação. O sonho se torna um lugar de acolhimento para aquilo que continua vivo, mesmo após a morte. Em tempos em que o luto é negado ou apressado, sonhar pode ser nossa forma mais íntima de cuidar da memória e da presença. De fazer do sonho uma espécie de reza. Uma oração feita em imagens.
Me lembro de uma história que ouvi há algum tempo atrás: quando a mãe de Elisa faleceu, o mundo pareceu perder sua margem. A sensação era de um silêncio espesso, como o de um céu sem nuvens. O enterro foi simples, discreto como ela havia pedido. Mas ninguém estava preparado para a caixa.
Era azul, de papel grosso, amarrada com uma fita vermelha gasta pelo tempo. Foi encontrada no fundo de uma gaveta, junto de uma echarpe antiga e de um frasco quase vazio de lavanda. Dentro da caixa: cartas. Muitas cartas. Algumas em envelopes fechados, outras em folhas soltas, páginas amareladas, pequenos bilhetes escritos no verso de recibos, guardanapos de café. Nenhuma trazia data. Todas eram endereçadas a ela e aos irmãos. Como se a mãe tivesse escrito ao longo dos anos, secretamente, sabendo que um dia alguém encontraria.
Não eram mensagens para serem lidas logo após sua partida. Eram cartas para outro tempo. Para depois do depois. Cartas para atravessar o luto, ou, quem sabe, para não se perder nele.
Escrever e ler durante o luto é como passar os dedos sobre uma ferida recém-formada. Como escreve Suely Rolnik, a dor do luto é inseparável do desejo: não o desejo de que volte o que se foi, mas o de que aquilo que partiu possa continuar vibrando, de outro modo. A morte, nesse sentido, não é ausência, é transmutação. E as cartas da mãe de Elisa eram isso: um modo outro de permanecer.
À noite, Elisa sonhava. Sonhos curtos, por vezes sem nexo. Mas o rosto da mãe aparecia. Sempre envolta em uma luz oblíqua, como uma lembrança que não se deixa fotografar. Às vezes, ela escrevia algo em silêncio. Outras vezes, apenas olhava com aquela calma que os mortos adquirem quando passam a habitar a linguagem dos sonhos.
Em um desses sonhos, Elisa entrou em uma casa escura. A mãe estava ali, tecendo uma colcha com lã. Ela não falava, mas sorria. No dia seguinte, Elisa escreveu o sonho em seu caderno. Talvez o sonho seja isso, um envelope onde o tempo se dobra.
As cartas não continham ensinamentos, nem respostas. Eram fragmentos. Lembranças, conselhos inesperados, declarações veladas. Uma dizia: “Não se apresse a entender tudo. Tem dores que só querem ser escutadas em silêncio.” e outra: “Se eu partir antes, me escreva. O luto é uma correspondência.”
Elisa passou a fazer isso. Escrevia cartas para a mãe que já não estava. E ao escrever, algo se rearranjava – não a saudade, que permanecia, mas a solidão que antes parecia insuportável. Escrever se tornou rito. Um modo de habitar o tempo com quem partiu.
Nas cosmologias ameríndias, como nos relatos de Davi Kopenawa, os mortos não desaparecem: eles permanecem próximos, soprando conselhos, imagens e direções. Não é coincidência que tantas culturas associem os sonhos ao mundo dos ancestrais.
Os mortos deixam rastros. Às vezes em palavras, outras em gestos, silêncios, sonhos. O luto, então, se torna uma escuta: das cartas que não chegaram, dos gestos que continuam operando em nós, das imagens que retornam em horas estranhas. Como diz Rolnik, é preciso afinar o corpo para perceber as potências sutis que atravessam o vivido — inclusive aquelas que nos visitam desde o outro lado da morte.
Talvez por isso alguns sonhos sejam como bilhetes deixados no escuro: mensagens que os mortos ainda tentam nos fazer chegar. O mundo onírico é o lugar onde essas forças ainda encontram passagem. Sonhar, nesse caso, não é apenas um trabalho do sono, mas um trabalho de escuta do invisível.
Talvez o luto não seja um processo com começo, meio e fim, como tantos manuais insistem em classificar. O luto é feito dessas presenças que não sabem partir por completo. São imagens, cheiros, frases interrompidas, sorrisos que ainda moram em um canto do quarto, numa roupa dobrada, num caderno esquecido.
Suely Rolnik, ao falar do luto como experiência viva, nos lembra que certas dores não se resolvem, apenas nos atravessam. E nos pedem escuta. Em vez de querer “elaborar” o luto como se fosse um problema a ser resolvido, talvez possamos acolher essas presenças que permanecem em estado de incompletude.
Nossos sonhos podem ser, portanto, pequenos altares temporários — rituais que não seguem regras fixas, mas que nos permitem processar a dor de um modo próprio. Eles nos devolvem imagens quando as palavras falham, e permitem que o luto se torne, também, uma escuta.
Sonhar o luto talvez seja isso: seguir elaborando a relação, mesmo quando a ausência se impõe.
Ficamos impressionadas com a morte porque ela é acontecimento que nos coloca diante da finitude de uma forma inexorável. A morte, nesse sentido, é mestra radical. Suspende a pressa, estilhaça o senso de continuidade. É o real inegociável.
Mas o luto também cansa. O luto sonhado pode nos visitar como um pesadelo, pode nos acordar em pranto, pode nos deixar vazias. Ainda assim, há algo de precioso nesses sonhos: são momentos em que o amor persiste. Onde o inconsciente, que não reconhece a morte da mesma forma que a consciência, ainda busca a presença de quem partiu.
Há quem evite dormir, por medo de sonhar com o luto. Há quem acorde com angústia, como se o trauma insistisse em se repetir. Para essas pessoas, os sonhos não são alívio, são revés. E é importante reconhecer isso. Sonhar com a morte nem sempre é reconfortante. Nem deve ser forçado a sê-lo.
A psique tem seus ritmos. E o luto também. Há fases em que o inconsciente repete a dor para digeri-la aos poucos. Outras vezes, sonhar é a única forma de voltar a ver, ouvir ou tocar quem amamos.
James Hillman, psicólogo pós-junguiano, dizia que o inconsciente sonha com a alma da experiência. E a alma da perda é uma alma profunda. Ao sonhar com nossos mortos, muitas vezes estamos tentando devolver a eles (e a nós mesmas), uma forma de presença que o mundo desperto já não permite.
Há uma potência imensa nos sonhos de luto, mesmo (ou principalmente) quando eles doem. Porque o que dói também revela o que ainda vive. Nos sonhos, o tempo se dilata. As despedidas podem ser refeitas. É uma forma de reencontro e de matar a saudade. Por isso, ao invés de tentar “decifrar” os sonhos de luto, talvez possamos apenas escutá-los. Escrevê-los. Agradecer a visita. Conversar com quem voltou para dizer algo, mesmo que seja só: estou bem, ainda estou aqui, cuide-se.
Sonhar com os mortos pode ser também uma forma de rito: uma maneira da psique marcar a passagem, de elaborar o vazio. Não é à toa que muitas culturas tradicionais cultivam a escuta dos sonhos de luto como parte do cuidado coletivo. Na tradição dos povos originários, por exemplo, os sonhos com ancestrais não são patologizados, mas acolhidos como mensagens, visitas, ensinamentos.
No pensamento de Davi Kopenawa, o sonho é um espaço onde os xapiri (espíritos) aparecem. Entre os Yanomami, o que sonhamos não é “nosso”, mas parte de uma rede viva de comunicação entre mundos. Os mortos, por vezes, voltam para instruir, proteger ou simplesmente acompanhar o que ficou por fazer.
Esses sonhos não nos pertencem. Eles passam por nós. Como brisas da madrugada, como avisos ou murmúrios. Como formas de não nos esquecermos.
Vinciane Despret – Um Brinde aos Mortos
Carl Gustav Jung – Sete Sermões aos Mortos
Suely Rolnik – Esferas da Insurreição
Davi Kopenawa & Bruce Albert – A Queda do Céu
James Hillman – O Sonho e o Mundo Subterrâneo
Hanna Limulja – O Desejo dos Outros
Texto de Laura Pujol
Foto de Ieve Holthausen
Arte de Jaya Cósmica