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O que são sonhos coletivos?

Por muito tempo, os sonhos foram considerados apenas manifestações individuais da psique, um terreno íntimo, subjetivo, restrito à individualidade de quem sonha. No entanto, muitas culturas originárias compreendem o sonho como algo muito maior: como um espaço de conexão com o coletivo, com o espírito do tempo e com os mundos invisíveis. É aí que emerge a noção de sonhos coletivos — sonhos que ultrapassam a esfera pessoal e ecoam uma consciência partilhada.

Sonhos coletivos: uma escuta ancestral que atravessa o tempo, os corpos e as culturas

Sonhos coletivos são manifestações oníricas que não pertencem apenas a uma única pessoa, mas se repetem entre membros de uma comunidade, de um povo ou até mesmo da humanidade em determinados momentos históricos. Carregam símbolos compartilhados, mensagens que reverberam entre diferentes sonhadores, experiências que parecem sintonizadas com algo maior do que o indivíduo. São sonhos que, de alguma forma, falam por todas — ou com todas.

Sonhar como escuta do inconsciente coletivo

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung foi um dos primeiros pensadores ocidentais a compreender o sonho para além da dimensão individual. Em sua teoria, ele propôs que os sonhos não expressam apenas o inconsciente pessoal, mas também revelam uma camada mais profunda e compartilhada da psique humana: o inconsciente coletivo. Essa instância psíquica abriga um repertório simbólico compartilhado, formado por arquétipos — estruturas universais e inatas que influenciam nossa percepção do mundo e se manifestam em imagens recorrentes, presentes em diversas culturas e períodos históricos.

Sonhos recorrentes em momentos de crise coletiva — como guerras, pandemias, mudanças climáticas, convulsões sociais — exemplificam como o inconsciente coletivo pode emergir nos sonhos como forma simbólica de antecipar, metabolizar ou integrar tensões coletivas. Nessas situações, essas imagens oníricas funcionam como prenúncios, alertas ou processos de elaboração psíquica diante do que está por vir.

A ciência dos sonhos também sonha junto

Em O Oráculo da Noite, o neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro investiga os sonhos sob uma perspectiva evolutiva e neurológica, mas sem perder a poética e a ancestralidade que envolvem esse fenômeno. Para ele, os sonhos são uma tecnologia de sobrevivência: uma ferramenta de previsão e adaptação que ajudou a espécie humana a se manter viva ao longo dos milênios.

No livro Sonho Manifesto, Sidarta avança ainda mais sobre o caráter político e coletivo do sonho. Ele defende que sonhar é um ato de resistência, de criação e de transformação. Ao resgatar o sonho como prática compartilhada e como forma de escuta coletiva, Sidarta se alinha com cosmologias indígenas e propõe um retorno ao sonho como bem comum.

Sonhar junto é prática ancestral

Na etnografia sensível O desejo dos outros – Uma etnografia dos sonhos yanomami, a antropóloga Hanna Limulja nos convida a adentrar o mundo onírico de um povo que nunca dissociou o sonho da vida cotidiana. Para os Yanomami, os sonhos não são apenas mensagens pessoais, mas comunicações com os xapiri (espíritos), com os mortos, com os animais e com os outros. Muitas decisões coletivas, curas e orientações espirituais são tomadas com base nos sonhos dos xamãs e dos anciãos.

Nesse contexto, o sonho é escutado em círculo, partilhado na manhã, celebrado ou temido como uma voz que vem do mundo — e para o mundo. Não é exagero dizer que, para os Yanomami, o coletivo sonha o indivíduo tanto quanto o indivíduo sonha o coletivo.

E quando todos sonham a mesma coisa?

Existem registros de sonhos coletivos ocorrendo simultaneamente em diversas partes do mundo. 

Alguns exemplos documentados incluem:

1. Sonhos premonitórios antes de tragédias

Sidarta Ribeiro relata em O Oráculo da Noite casos em que múltiplas pessoas sonharam com eventos catastróficos antes de sua ocorrência. Um exemplo notável é o do atentado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, quando diversas pessoas relataram sonhos com aviões e edifícios pouco antes do acontecimento.

2. Sonhos compartilhados entre os Guarani Mbya

Em sua dissertação de mestrado, Marcelo Hotimsky observa como os Guarani Mbya compartilham sonhos em práticas de aconselhamento e tomada de decisões coletivas. Os sonhos são considerados mensagens que orientam ações comunitárias.

3. Matriz do Sonhar Social

A psicóloga Solange Aparecida Emilio desenvolveu a prática da “Matriz do Sonhar Social”, na qual grupos compartilham sonhos em um formato específico para explorar significados coletivos. Essa prática tem sido utilizada em contextos terapêuticos e organizacionais.

Essa sincronicidade não é apenas curiosa, mas profundamente reveladora: há algo em nós — uma escuta fina, talvez inconsciente — que percebe os movimentos do mundo antes que eles se concretizem. Sonhar, neste sentido, torna-se um instrumento de leitura do futuro e de elaboração coletiva do presente.

O poder dos círculos de sonhos

Retomar a prática de compartilhar sonhos em grupo é uma maneira de reconectar-se com essa escuta coletiva. Em círculos de sonhos — como os que acontecem em tradições indígenas ou em contextos terapêuticos contemporâneos —, o sonho deixa de ser isolado e passa a ser interpretado como parte de um todo maior.

É o que Sidarta Ribeiro chama de “ecologia do sonho”: um campo onde as imagens noturnas são sementes lançadas no solo fértil da escuta coletiva. Foi também com esse intuito que criamos a Comunidade Sonhadora, um espaço onde você pode partilhar seus sonhos e trocar sobre os sonhos das outras pessoas.

O sonho como território político, espiritual e sensível

Em tempos de ruído constante, excesso de informação e rupturas sociais, o sonho aparece como território sagrado e estratégico. Sonhar junto é abrir espaço para imaginar outros mundos possíveis — outras formas de viver, resistir e amar.

Freud, embora tenha interpretado os sonhos sobretudo como realizações de desejos reprimidos, reconhecia seu potencial de elaboração simbólica. Mas é com Jung, Sidarta, Hanna Limulja e os povos originários que o sonho retoma seu lugar coletivo — não apenas como revelação do Eu, mas como revelação do Nós.

Referências bibliográficas

LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos yanomami. Todavia, 2022.
RIBEIRO, Sidarta. O Oráculo da Noite: A história e a ciência do sonho. Companhia das Letras, 2019.
RIBEIRO, Sidarta. Sonho Manifesto. Companhia das Letras, 2022.
HOTIMSKY, Marcelo. Sonhos compartilhados: dos encontros oníricos às práticas de aconselhamento entre os Guarani Mbya. Dissertação de Mestrado, USP, 2023.
EMILIO, Solange Aparecida. Matriz do Sonhar Social: Uma Experiência no Brasil. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Out-Dez 2013, Vol. 29 n. 4, pp. 459-468.\
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 2008.

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