« Voltar para o Blog

O Inevitável Chamado da Noite

Quando o sol se recolhe e o dia silencia, abre-se a porta sutil da noite, e a alma se lembra de seu ofício. Dizem que, nesse crepúsculo, a mente se torna um mapa sem fronteiras: ali, aprendemos a voar sem gravidade, tocando a vastidão que a vigília nos esconde; ali, também, reencontramos os antigos pesos e os traumas que o corpo diurno não conseguiu desatar.

Sonhar é o modo da alma visualizar seu caminho. Rememorar e registrar é começar a mover essa paisagem, dando início à elaboração do que precisa ser transformado. Celebramos o impulso que nos faz alçar voo, e celebramos, com igual reverência, a insistência do sonho difícil que retorna. Ele não é punição, mas um ensino vital que a sabedoria interna oferece ao nosso eu.

O sonho é um agente de compensação: ele nos convida a caminhar nas profundezas onde o material traumático clama por ser visto e integrado. Mas ele também nos lança ao alto, nos fazendo voar sobre o real, ensaiando a potência e a liberdade que a vida permite. Em um ciclo perpétuo de peso e ascensão, o sonho nos mostra, sem edições, o que a alma está tecendo para a sua próxima manhã.

Sonhar: receber visitas inesperadas

A vida onírica não exige de nós uma tradução imediata. Ela pede convivência.

Às vezes, o sonho chega aparentemente completo, como um filme. Outras, fragmentado: a imagem de um gesto sem rosto, a silhueta de um animal, alguém que corre para a sombra. A maior parte de nossos sonhos é feita de fragmentos, e “lembrar apenas um detalhe já é lembrar”, como escreve Sidarta. 

A memória onírica tem muitas peculiaridades. Pode ser tímida, e se aproximar como um animal selvagem que primeiro observa de longe. Em outros momentos, é como um furacão que chega e sacode as estruturas. Ou pode vir como uma sensação: sentir o corpo frio de entrar no mar gelado, voar pelas alturas, conseguir se salvar de alguma situação perigosa. 

Oferecer nossa atenção a essas imagens é uma forma de dizer: eu confio. Os sonhos são levados da breca, indomáveis e esquivos, como animais selvagens que visitam a fronteira da floresta. Mas, ao invés de tentarmos enjaulá-los com a razão, oferecemos um caderno como território seguro. Oferecemos nossa escuta a outros sonhos, não apenas os nossos. E assim vamos criando um território fértil para florescer junto aos sonhos, reconhecendo sua sabedoria milenar. É assim que a jornada de autoconhecimento através dos sonhos começa: criando laços com o mistério.


Como criar laços com o mistério?

Registrar não é uma caçada ao “significado final” do sonho; é, na verdade, um ritual de aproximação com a linguagem da nossa psique. É colocar o pé na areia movediça da memória onírica para criar uma trilha de pegadas que você possa seguir ao longo do seu próprio ciclo de meses e luas.

Quando chego ao Sonhário, dou chance para o etéreo ganhar substância.

Com a caneta ou o lápis, dou forma e corpo ao que era vaporoso, registro o que seria fugaz para que me perca no primeiro raio de sol.

Permito que a memória retorne com uma nitidez e profundidade inesperadas, revelo nuances que o despertar imediato tende a esquecer.

Abro um espaço seguro e iluminado para que o que foi vivido no escuro possa ser revisado, aceito e compreendido pela consciência.

Este é o poder da atenção. Assim dou  continuidade ao que vivi no silêncio da noite.

Carl Jung via neste processo a “continuação do sonho pela escrita”. E essa perspectiva é crucial, pois ela nos tira da posição passiva de meros observadores. A escrita dos sonhos é uma elaboração ativa, o gesto alquímico de transformar o fugaz e o etéreo do sonho em substância psíquica e força. 

Ao reescrevermos, estamos integrando o recado noturno à nossa história diurna, o que é a função compensatória da psique em ação. E essa elaboração é o coração em movimento, a bússola que orienta a jornada do autoconhecimento dentro das páginas de um Sonhário.

O Sonho como Paisagem Emocional

O sonho raramente trata de fatos; ele fala de movimentos internos — tensões, medos, desejos, pressentimentos. 

Se você sonha com um mar revolto, é mais simples e mais profundo perguntar: Como essa água me fez sentir? O que em mim está pedindo para ser nomeado? O que em meu corpo reagiu ao despertar? Assim, o sonho se torna um espelho, nos conectando a partes de nós que a consciência diurna, por proteção ou pressa, evita.

O peso e a leveza: a dupla face da noite

É nos sonhos que a psique busca equilibrar a experiência. O sonho é, simultaneamente, o chão que cede sob meus pés e o céu que me sustenta.

Se sou visitada por sonhos traumáticos ou repetitivos, eu escolho não fugir deles. Eu reconheço: eles são o meu inconsciente pedindo para terminar a história que o dia não me permitiu encerrar. Eles me mostram a ferida que clama por acolhimento e a energia psíquica que ficou presa em algum momento difícil.

Se sonho que estou voando, eu não decifro o símbolo, eu sinto a ascensão. Esse sonho é uma compensação do meu espírito, é a liberdade que estou prestes a conquistar ou a potência que já possuo e que está sendo ignorada pela rotina.

Em ambos os casos, a minha atitude é a mesma: registrar para conviver. Eu dou espaço para que o medo e a liberdade possam existir lado a lado no meu Sonhário.

Olhar para Trás para Enxergar o Ritmo

Quando olhamos para as anotações ao longo das semanas, podemos perceber que o inconsciente repete temas. Revisitando os relatos, pode ser que você descubra muitas coisas.

Talvez você descubra:

Um símbolo que aparece sempre antes de uma grande transição.

A casa onírica que muda de cômodo conforme você muda por dentro.

Um cenário que revela o estado de seu corpo emocional.

Essa percepção tem algo mágico: é a memória afetiva que se revela. Com a ajuda do Sonhário, essa jornada se torna concreta e palpável. 

Você enxerga a continuidade entre as noites que pareciam desconexas, um ritmo secreto que só emerge quando aceitamos a pausa e o gesto de olhar para trás.

O sonho é imagem, emoção e sensação. Por isso, ele não precisa ser elaborado apenas pela palavra. Você pode desenhar a cena mais marcante, mover o corpo como no momento que te tocou, ou escrever uma carta para uma personagem noturna. O importante é permitir que o sonho te atravesse um pouco mais.

Ao fazer isso, você constrói intimidade com a linguagem simbólica da psique — uma linguagem que não explica, mas toca.

Registrar no Sonhário

Registrar um sonho é erguer uma pequena casa de escuta no meio do tempo.
Cada anotação é uma janela aberta para o que você foi, para o que está se tornando, para aquilo que ainda não ousou nomear.

O Sonhário não é apenas um arquivo:
é um espelho que envelhece com você, um mapa que se redesenha a cada noite,
um testemunho silencioso das conversas que sua alma mantém consigo mesma.

Sonhar é um acontecimento inevitável.
Registrar é um gesto de coragem.
Com um Sonhário, você aprende a se acompanhar.
E isso, por si só, já é um caminho.

Texto de Laura Pujol, psicoterapeuta e doutora em Psicologia Social, para a Mandala Lunar

Comentar