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Não conseguir sonhar: um sintoma do nosso tempo

Uma reflexão sobre as dificuldades de descanso, contemplação e rememoração

Descansar é resistir. (Tricia Hersey)

“Eu nem sonho… eu nem tenho tempo pra sonhar”, me disse uma amiga, quando perguntei o que ela andava sonhando ultimamente.  Mulher, negra, trabalhadora, faz faxinas em casas de famílias de classe média. Ouvir isso me doeu fundo. Porque não era só sobre o sonho noturno — era também sobre o direito de desejar, de imaginar, de parar. E o que acontece com uma vida que não pode mais descansar?

Um estudo publicado pela Associação Brasileira do Sono revela que a insônia é o distúrbio do sono mais comum na população em geral, acometendo ainda mais as mulheres. Muitas mulheres não descansam porque o descanso foi negado como direito. Foi transformado em luxo, em uma recompensa só permitida quando tudo estiver pronto — e nunca está. E, por isso, muitas adormecem exaustas, e acordam ainda mais cansadas.

Outro estudo recente apontou que devido a contaminação luminosa nas cidades, as noites estão cada vez mais brancas, prejudicando não apenas o descanso dos humanos, mas afetando também a vida dos animais. Em uma sociedade que supervaloriza a produtividade incessante, o descanso é frequentemente subestimado e visto como uma interrupção indesejada.

O que acontece quando não conseguimos mais sonhar?

Vivemos imersas em um tempo contínuo, como apontou o pesquisador Jonathan Crary. Ele cunhou o termo 24/7 para descrever essa era em que tudo funciona e exige funcionar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Um cotidiano onde não existe mais distinção entre manhã e madrugada, entre trabalho e lazer, entre estar presente e estar disponível. 

Segundo Crary, dormimos hoje cerca de duas a três horas a menos do que há cem anos. Essa erosão do sono não é apenas estatística: ela fala de um adoecimento. Afeta nossa saúde, nossa capacidade criativa, nossa potência de sonhar. Dormir vira, nesse contexto, um desafio, e sonhar, um ato raro. 

 E se o próprio descanso passou a ser negado como prática, logo ele também nos será negado como imagem. O sonho deixa de ser território fértil para virar ruído, incômodo, atraso. E, no entanto, o que pode estar tentando nos alcançar, ali, quando tudo parece nos empurrar para longe de nós mesmas?

Sem a nossa atenção, é como se o sonho deslizasse pelas frestas do esquecimento assim que abrimos os olhos e não o encontrássemos mais. 

Sonhar, aos poucos, parece ter se tornado um gesto de desobediência. Como se, ao persistir, o sonho fosse uma espécie de resistência secreta, uma linguagem da alma que continua tentando dizer algo, mesmo quando o mundo nega a nós este espaço vital.

“Descanso é silêncio”

Na segunda edição do Jornal O Onírico, a artista e “descansóloga” Michele Zgiet propõe uma escuta poética das últimas palavras de Hamlet: “The rest is silence”. Para ela, não se trata de “resto”, como traduzido usualmente, mas de descanso. De um silêncio vital. O silêncio que acompanha o repouso necessário, que não sobra: é parte da vida. Nas palavras de Michele:

“‘The rest is silence’: eu sempre leio como ‘o descanso é silêncio’. E, por ser descanso e por existir em silêncio – o morrer – optamos por traduzir as últimas palavras de Hamlet como “resto”. Como se descansar- “dormir, talvez sonhar”- fosse um prêmio a ser conquistado lá no fim dos dias.”

O descanso, nessa perspectiva, é semente, não sobra. É presença, não ausência. A artista e ativista Tricia Hersey, criadora do The Nap Ministry, leva essa ideia ainda adiante. Ao criar espaços públicos para cochilos coletivos em cidades norte-americanas, Tricia afirma que ver uma mulher negra dormindo em paz, nas cidades erguidas pela escravidão, é um gesto revolucionário. 

Talvez o que esteja em jogo seja a nossa capacidade de ouvir o que os sonhos querem dizer. Até os pesadelos carregam mensagens. Os monstros que nos visitam à noite não são aleatórios: eles muitas vezes se alimentam das assombrações do dia, dos medos que calamos, das histórias que deixamos inacabadas.

Os monstros noturnos são moldados por nossas experiências diurnas. Nossos dias, feitos de contingências, pressões e ausências, continuam assombrando as noites, ainda que sem nome. Se manifesta em agitação, em insônia, em uma assombração da luz branca que tudo ilumina e impede o dormir. 

E se o sonho fosse mesmo um dos últimos territórios não capturados pela lógica incessante da produtividade? 

Durante o sono, não respondemos, não compramos. Por isso, o descanso se torna suspeito. Quanto menos dormimos, mais “produtivas” parecemos. Mas quanto mais longe do sono, mais distante também nossa escuta mais profunda. O sonho é uma terra incognita. Não precisa, nem deve ser inteiramente mapeado. Sua força está, justamente, em permanecer um tanto obscuro. É no silêncio e no apagar das luzes que sua magia se faz, sustentando o indizível. 

Sonhar é uma das formas mais antigas de imaginar o que ainda não existe. 

Talvez seja justamente isso que nos falte: espaço para que os sonhos cheguem. Deitar-se com um caderno ao alcance da mão, apagar as luzes com delicadeza, fazer um pedido silencioso por imagens antes de adormecer. Ao amanhecer, buscar reservar pelo menos alguns minutos antes de pegar o celular, antes de atender às demandas do mundo. 

Sonhar é mais do que um ato noturno, é lembrar que somos feitas de escuta, ciclos e atravessamentos. É reconhecer em nós aquilo que pulsa em conexão com a vida e seus ritmos de vigília e recolhimento. O sonho é refúgio, mas também farol. E talvez, sonhar, hoje, seja nossa maneira mais íntima de não esquecer quem somos.

Texto de Laura Pujol
Fotografia de Ieve Holthausen

Referências:

 Os estudos da Associação Brasileira do Sono podem ser acessados em : https://absono.com.br/publicacoes-sono/

Ver Mapa de Contaminação Lumínica, disponível em: https://www.lightpollutionmap.info/ 

O Consultório de Denscansologia, de Michele Zgiet, pode ser lido em:  http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=001128691&loc=2022&arq=2&l=112509a08c08000d. O Onírico, ed. II – a paranoia delirante, março de 2022, p. 13.

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

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