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Antigas civilizações e o uso dos sonhos como ferramenta social

Ao longo da história da humanidade, os sonhos exerceram um papel fundamental na construção de significados, na orientação de decisões e na conexão com o sagrado. Em diversas culturas ancestrais, o ato de sonhar transcende o âmbito individual, sendo compreendido como uma prática coletiva e uma ferramenta social, política e espiritual. 

Sonhos no antigo Egito: portais para o divino

No Antigo Egito, os sonhos eram considerados pontes diretas entre o mundo terreno e o plano divino. Durante o período ptolemaico — iniciado após a conquista de Alexandre, o Grande, e marcado por quase três séculos de domínio da dinastia grega dos Ptolomeus — houve uma profunda fusão entre as tradições religiosas egípcias e helenísticas. Esse sincretismo  moldou novas divindades e transformou antigos rituais, fortalecendo ainda mais o papel dos sonhos como meio de comunicação com os deuses.

Foi nesse contexto que surgiu Serápis, uma divindade que unifica gregos e egípcios sob um mesmo culto. Serápis combinava atributos de Osíris (o deus egípcio da vida após a morte e da regeneração) com características de deuses gregos como Asclépio (deus da cura), Hades (o senhor do submundo) e Zeus (símbolo de autoridade suprema).

Serápis tornou-se o símbolo dos sonhos reveladores. A ele eram dedicados templos que funcionavam como centros de incubação onírica — especialmente Serapeu de Alexandria, que se tornou um dos locais mais importantes para a prática do sonho oracular no Mediterrâneo antigo. Ali, os fiéis passavam por rituais de purificação, jejum e oração antes de dormir dentro do templo, buscando receber, durante o sono, visões e mensagens divinas capazes de orientar decisões de vida, curar enfermidades ou oferecer direção espiritual.

Esses espaços sagrados eram vistos como verdadeiros oráculos oníricos, onde corpo e espírito se preparavam para atravessar os véus da consciência. A prática da incubação de sonhos com Serápis reforça a visão, amplamente difundida na antiguidade, de que o mundo onírico não era ilusão, mas sim uma realidade paralela, rica em símbolos e significados. Como escreveu Sidarta Ribeiro em O Oráculo da Noite, “a mente noturna sempre falou a verdade – mas em sua própria língua, a linguagem cifrada do inconsciente”.

Através de Serápis, os egípcios e gregos aprendiam a escutar essa linguagem, onde o sonho era tanto remédio quanto revelação.

Sonhar com os Outros: a perspectiva Yanomami

Entre os Yanomami, os sonhos são compreendidos de maneira distinta da visão ocidental. Para eles, sonhar é uma forma de habitar outros mundos e de se conectar com o desejo dos outros — sejam eles espíritos, animais, pessoas ou forças da floresta.

A antropóloga Hanna Limulja, em sua obra “O Desejo dos Outros”, destaca que, para os Yanomami, os sonhos não são expressões do inconsciente individual, mas sim manifestações do desejo de outrem, sejam eles espíritos, animais ou pessoas.

Essa compreensão coletiva dos sonhos implica em uma responsabilidade compartilhada. Sonhos são discutidos coletivamente e podem orientar ações do grupo. Um sonho com inimigos ou ameaças pode ser interpretado como um aviso para reforçar a vigilância ou evitar conflitos. Assim, o sonho torna-se um instrumento de governança comunitária e manutenção da ordem simbólica e espiritual.

A ciência dos sonhos: contribuições de Sidarta Ribeiro

O neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, em suas obras “O Oráculo da Noite” e “Sonho Manifesto”, explora a importância dos sonhos na evolução humana e na construção de culturas a partir de uma perspectiva evolutiva e científica. Ele argumenta que os sonhos sempre foram ferramentas essenciais para a sobrevivência, permitindo que os seres humanos simulassem cenários, resolvessem problemas e fortalecessem laços sociais.

Sua pesquisa destaca como os sonhos influenciaram decisões políticas, estratégias de guerra e práticas religiosas em diversas civilizações. Ao estudar os sonhos sob uma perspectiva científica, Sidarta reforça a ideia de que o mundo onírico é uma dimensão rica e complexa, fundamental para a compreensão da experiência humana.

Conexões contemporâneas: aprendendo com os sonhos ancestrais

As práticas oníricas das antigas civilizações e dos povos indígenas oferecem valiosas lições para o mundo contemporâneo. Em mundo marcado pela lógica da produtividade, dominado pela desconexão e pelo individualismo, resgatar a escuta dos sonhos pode ser um gesto de reconexão profunda com o inconsciente coletivo, com os ciclos naturais e com as necessidades humanas mais essenciais.

Incorporar a prática de compartilhar sonhos em círculos ou reconhecê-los como orientadores em tempos de crise pode transformar não apenas o indivíduo, mas a forma como nos organizamos como sociedade.

O sonho como ferramenta de transformação social

Os sonhos, longe de serem meras manifestações do inconsciente individual, têm sido, ao longo da história, poderosas ferramentas de coesão social, orientação espiritual e transformação cultural. Ao mergulharmos nos modos como diferentes culturas entendem o sonhar, especialmente aquelas que preservam uma relação simbiótica com a natureza e o sagrado, somos convidados a expandir nossa escuta e rever a forma como habitamos o mundo.

Que possamos, inspirados por essa sabedoria ancestral, cultivar uma escuta mais atenta aos nossos sonhos e aos sonhos dos outros, construindo e despertando, uma nova consciência coletiva: uma sociedade mais conectada, empática, integradora, intuitiva e consciente.

Referências:

Limulja, H. (2022). O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami. Ubu Editora.
Ribeiro, S. (2019). O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho. Companhia das Letras.
Ribeiro, S. (2021). Sonho Manifesto. Companhia das Letras.

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