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Sangue de Vida

Sangramos e não morremos, doamos vida. Com essa força mágica e visceral as mulheres recriam a si mesmas mês a mês.  No caldeirão alquímico do útero transformam alimento em corpo dando vida à pessoas e à sua própria força criativa. Nosso sangue, por tanto tempo negligenciado, escondido, envergonhado e desprezado, pede sem demora para ser visto, honrado, experimentado. As mulheres aos poucos escutam esse chamado, um chamado da Terra, das nossas ancestrais, um chamado para cuidarmos do nosso corpo-terra. Nosso sangue é uma terra fértil capaz de receber e providenciar os nutrientes necessários para gerar uma nova vida. Sangrar em ciclos nos conecta com essa força misteriosa de vida-morte-vida, a força ancestral e instintiva feminina. Aos poucos estamos voltando ao nosso lar, ao encontro de nós mesmas, no centro do nosso útero-coração, em círculo e de mãos dadas com nossas irmãs vamos retomando nossos poderes e conhecimentos femininos.

A visão de nossa sociedade sobre a menstruação é a de um evento biológico incômodo que altera nosso humor e disposição. O tabu menstrual é um dos mais antigos e recorrentes do mundo. Nesse cenário, muitas mulheres se sentem  “improdutivas” nesse período e vem sua ciclicidade como uma perda e desvantagem por ser mulher. Nos distanciamos do nosso ciclo e do nosso sangue, sentimos nojo ou vergonha de estarmos menstruando. Pouco recebemos de informação sobre nosso ciclo menstrual, apenas sabemos que mulheres menstruam sem entender bem o porquê, sem conhecer o poder e a sabedoria do ciclo feminino.

No Brasil, milhares de mulheres utilizam mensalmente dezenas de absorventes descartáveis que contém inúmeros componentes químicos prejudiciais para a saúde. Alguns desses produtos provocam aumento no fluxo menstrual e são cancerígenos. O uso de tampões e absorventes descartáveis esconde nosso sangue e o transforma em lixo descartável que faz crescer os lixões e contamina o planeta com produtos sintéticos e poluentes*. Cada vez mais médicos defendem que menstruar é um evento desnecessário e influenciam muitas meninas e mulheres a tomarem hormônios ininterruptamente para não menstruar, desprezando os efeitos colaterais em nosso corpo ao fazer isso.

*Paralelo a isso, nesse cenário de desigualdade que vivemos, muitas mulheres e meninas que não tem acesso a produtos menstruais e durante sua menstruação acabam deixando de ir pra escola ou usam produtos que podem causar danos ao corpo e a saúde – como miolo de pão,  papel higiênico, etc-  o que configura a pobreza menstrual. Por isso, precisamos garantir o acesso a produtos básicos de higiene menstrual para todas as pessoas que menstruam e melhor se for ao mesmo tempo em que cuidamos da Terra.

No entanto, a Dr. Paula Hillard, pesquisadora de obstetrícia e ginecologia da Universidade de Medicina de Cincinnati, defendeu a ideia do ciclo menstrual como o quinto sinal vital e sua importância para avaliarmos a condição geral de saúde de meninas e mulheres. Segundo suas pesquisas, o ciclo menstrual é uma janela para compreensão geral da saúde da mulher e não somente um evento reprodutivo. O ciclo menstrual pode indicar a saúde dos ossos, do coração, a ação dos ovários, assim como a fertilidade a longo prazo. Dessa forma se o ciclo menstrual não está saudável, é um sinal de que algo mais não está bem.

O sangue é como um oráculo que traz preciosas informações sobre nossa saúde. É muito importante nos conectamos com sua força, tocá-lo nas mãos, sentir seu cheiro, analisar sua cor, olhar para ele, para essa parte de nós mesmas que negamos, sem nojo, vergonha ou medo. Na Medicina Chinesa há um estudo antigo sobre o que revela de nossa saúde cada aspecto do sangue. Quando nosso fluxo está muito intenso (quase como uma hemorragia) ou muito claro e aguado pode indicar um mal funcionamento do baço. Um fluxo muito fraco ou a ausência de menstruação pode estar relacionado a um desequilíbrio dos rins. A total ausência de menstruação pode ocorrer também devido a anemia ou desnutrição. Se a cor do sangue está muito escura ou com muitos coágulos e cólicas pode indicar um mal funcionamento do fígado. Existem muitos estudos sobre o que nosso sangue indica, além do que a nossa própria observação pode nos informar. Analisando, tocando e sentindo nosso sangue é que podemos fazer essa observação, nos tornando pesquisadoras de nós-mesmas. Ao encontrarmos nosso desequilíbrio podemos corrigi-lo com uma alimentação adequada, uso de ervas, acupuntura, exercícios físicos e com a mudança de aspectos em nossa vida que precisam ser transformados. A auto-observação é muito importante na manutenção de nossa saúde e bem estar.

Recentes estudos apontam que o sangue menstrual contém células-tronco auto-renováveis. Essas células possuem muitas propriedades e características semelhantes à medula óssea e às células estaminais embrionárias; ou seja, se multiplicam rapidamente e podem se diferenciar em muitos outros tipos de células-tronco, como neurônios, ossos, gorduras, cartilagens e possivelmente ainda outras. Mais pesquisas precisam ser feitas nesse sentido e aos poucos vamos (re)conhecendo o potencial curativo do sangue menstrual, seu valor e poder. Na Índia e nos Estados Unidos está crescendo o número de bancos de sangue que estão coletando e armazenando sangue menstrual para ser utilizado no futuro, para quando mais pesquisas forem feitas e uma nova medicina integrativa possa emergir.

Plantar a lua, um ritual de reconexão

   Mulheres sábias, avós de diversas tradições, estão fazendo um chamado para as mulheres não mais jogarem seu sangue no lixo. Nosso sangue sagrado não deve ser descartado dessa forma. O chamado é para que as mulheres devolvam seu sangue para a terra em um gesto de profunda gratidão, respeito e amorosidade. O sangue menstrual é uma fonte rica de nutrientes, minerais e hormônios, e por isso é um poderoso um fertilizante natural.

Esse gesto de devolver o sangue à terra nos conecta com a natureza e a fonte criadora de uma forma mágica e profunda. Para isso, é importante você recolher seu sangue com um coletor menstrual, com o uso de absorvente de pano ou toalhinhas. Recolha seu sangue vivo, misture em um pouco de água e utilize um recipiente (uma jarra de metal, vidro ou cerâmica) especialmente para isso. Vá até um lugar especial para você em meio à natureza e crie seu ritual de entrega e agradecimento. Nutra suas plantas, se conecte com a terra e com a natureza a partir de um lugar de profundo respeito e gratidão. A sabedoria feminina ancestral nos diz que quando nos conectamos e curamos nossa relação com o ciclo menstrual, aceitando nosso dom feminino e curando as relações com as mulheres de nossa linhagem, podemos curar a maioria das condições de saúde relacionadas ao ciclo e ao útero/ovários. Em especial o ato de entregar o sangue à terra oferece um poderoso remédio para a cura feminina de uma forma que a medicina não é capaz de explicar. São mistérios do nosso corpo sagrado.

A palavra ritual vem de “rtu”, termo do sânscrito que significa menstruação. Os primeiros rituais estavam relacionados ao sangramento mensal das mulheres e acreditava-se que o sangue do útero possuísse mana, o poder mágico.

Um dos propósitos da Mandala Lunar é facilitar a conexão das mulheres com os ciclos naturais que regem toda a vida. Nesse sentido, observar a forma como a Lua nos afeta é um aspecto muito importante da nossa caminhada de conexão e autoconhecimento. O ritmo cíclico da Lua assemelha-se ao ciclo menstrual feminino já que a lunação tem uma duração aproximada da do nosso ciclo. Por isso chamamos a menstruação de nossa “lua” interna.

A Lua e o ciclo menstrual

Desde tempos imemoriais, nossas ancestrais tentam encontrar formas de compreender e acompanhar seus ciclos menstruais. Uma das primeiras associações foi do ciclo menstrual com o ciclo da Lua, pois seus ritmos são semelhantes. O ciclo completo da Lua tem 29,5 dias enquanto o ciclo menstrual tem, em média, 29 dias. As próprias palavras “menstruação”, “mês” e “lua” estão ligadas em sua etimologia – do grego mené (lua) e mén (lunação), deriva a palavra latina mensis, origem de “mês”. Algumas arqueólogas afirmam que os primeiros calendários feitos pela humanidade podem ter sido de pessoas tentando acompanhar seus ciclos menstruais.

A Lua e a menstruação mantêm uma relação íntima, que pode ser uma coincidência ou um mistério que ainda não somos capazes de entender. Algumas pesquisadoras sugerem que, no passado, sem a interferência de luzes artificiais e convivendo juntas em comunidades, as mulheres menstruavam e ovulavam juntas e em sincronia com a Lua, em algumas regiões, durante a lua nova e, em outras, durante a lua cheia. Essas são apenas hipóteses, mas é bonito imaginar que nossos corpos respondem aos ritmos celestes.

Para saber mais sobre a relação de seu ciclo com a Lua, convidamos você a pesquisar e encontrar suas próprias respostas. Miranda Gray oferece uma hipótese de interpretação para menstruar e estar fértil em determinadas fases lunares. Para ela, estamos no Ciclo da Lua Branca quando menstruamos na lua nova e estamos férteis próximo da lua cheia. Nesse ciclo, nosso poder fértil e o da lua coincidem, assim como nossa interiorização na fase menstrual, potencializando essas energias. Já o Ciclo da Lua Vermelha acontece quando menstruamos na lua cheia e estamos férteis próximo à lua nova. Aqui a criatividade e a energia do ciclo menstrual (de recolhimento e interiorização) estão direcionadas para fora, já a fertilidade, que tende a ser para fora, é direcionada para o desenvolvimento interior e a expressão da força criativa. Quando menstruamos na lua crescente ou na lua minguante, a interpretação é que podemos estar vivendo um período de transição em nossas vidas.

Embora os ciclos menstrual e lunar tenham um tempo similar, é muito raro que sincronizem. Enquanto o ciclo lunar dura 29,5 dias, o ciclo menstrual tem de 24 a 35 dias e muda naturalmente de duração ao longo de nossas vidas.

Podemos honrar nossas Luas fazendo pequenos rituais, como o de entregar nosso sangue à terra, pintar pontos específicos do nosso corpo (para potencializar as energias dos chakras), pintar um autorretrato (com intenção de cura) ou escrever afirmações positivas com essa tinta de poder. Devemos utilizar o sangue menstrual com a consciência de que onde ele toca, toca com seu imenso poder de vida, tornando mágica e poderosa qualquer pintura ou texto. Dessa forma, é importante termos atenção sobre onde ou o que pintamos e escrevemos com ele.

Esse texto foi escrito por Naíla Andrade para a Mandala Lunar 2018.

Ilustrações: Chana de Moura

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