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 Do Exílio ao Círculo: A Potência da Amizade entre Mulheres

É relativamente nova a aparição da importância da amizade entre mulheres nas estatísticas de produção de saúde mental e, cada vez mais, ela se faz presente nas narrativas que chegam aos espaços de psicoterapia e de criações coletivas. Às vezes, surgem como um sussurro, um gesto de cuidado: a amiga que te escuta no meio da madrugada, que acolhe o choro sem perguntar nada, que faz uma comida quentinha, que arruma uma cama pra você dormir na casa dela. Embora a psicologia e a psicanálise tenham se debruçado longamente sobre as relações familiares, a maternidade, o amor romântico e os movimentos coletivos e sociais, a amizade entre mulheres demorou um tempo para aparecer com força no debate público, talvez porque as alianças que as mulheres constroem entre si tenham sido alvos de perseguições históricas.

Como nos lembra Silvia Federici, filósofa italiana, mulheres que se unem sempre foram perseguidas e punidas. Na Inquisição, na colonização, no capitalismo contemporâneo, o ataque às mulheres foi, e segue sendo, um ataque à sua capacidade de produzir redes. A caça às bruxas foi um longo período de perseguição onde a destruição da política da vizinhança feminina, das redes de apoio, foi condição essencial para consolidar a ordem capitalista. Eram mães, bruxas, parteiras, curandeiras, rezadeiras, pesquisadoras, artistas que se uniam e eram ameaçadas, julgadas em tribunais populares e queimadas em fogueiras. Chamaram de fofoca aquilo que, na verdade, era a transmissão de histórias, saberes, alertas, memórias de cuidado e sobrevivência. Toda amizade feminina guarda, ainda que inconscientemente, essa alma subterrânea, clandestina e revolucionária. Se destruir os nossos laços foi um imperativo de dominação, reativar os laços é um ato de regeneração. 

O inconsciente coletivo sabe que há algo profundamente psíquico no fato de uma mulher encontrar outra e se sentir vista e reconhecida. A amizade feminina cria um território existencial onde podemos respirar fora da lógica do desempenho funcional: fora da mãe perfeita, da cuidadora inabalável, da profissional adversária que precisa se destacar, da mulher-objeto que precisa performar um ideal de beleza e feminilidade. Entre amigas, uma mulher pode falhar, colapsar, gargalhar alto, ser humana. E isso faz toda a diferença. É aqui que nascem os territórios selvagens onde não precisamos ser dóceis, belas e úteis. É aqui que não se faz necessário maquiar as angústias. E como bem nos lembra a psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés: a mulher que recupera a matilha, recupera a psique instintiva e o desejo de viver pois a relação entre mulheres guarda o poder de restaurar o feminino ferido pela cultura. Quando uma mulher escuta outra, quando compartilha as imagens de seus sonhos, repletas de desejos, medos e sombras, por exemplo, as forças de conexão e amor circulam impulsionando os processos de criação vital. 

Num mundo que nos quer competitivas, silenciadas e culpadas, amizade é antídoto. Ela não nos salva de atravessar dores profundas, mas impede que estas nos matem física e psiquicamente. Não evita que tragédias coletivas nos derrubem, mas nos ajuda a recuperar o sentido após elas passarem. Por vezes, é água que limpa com delicadeza, em outras é ventania que sacode e nos levanta do chão. Mulheres costuram umas às outras: com a escuta afetuosa enquanto cozinham, com os abraços quando voltam para casa depois do trabalho, com um convite para suar e expurgar o desânimo dançando, com um café e uma poesia compartilhada num domingo. É partilhar a mesa de comida, repassar os unguentos, segurar o bebê da outra para que ela tome um banho com calma. Miudezas que pouca gente vê, mas que sustentam comunidades de pé.  

Quando mulheres se reúnem para conversar sobre as suas angústias e a criação de estratégias de cuidado de si, dos filhos e a sobrevivência em meio a emergência climática, essa conversa é, em si, um ato político, pois como nos diz bell hooks, o amor é um ato político de sustentação da vida, pois onde o Estado fracassa, a amizade feminina opera como Estado afetivo. Em Comunhão: A Busca Feminina pelo Amor, bell hooks nos mostra que recuperar a amizade entre mulheres é uma escolha afetiva que o patriarcado não consegue controlar, um lugar onde mulheres se reconstroem e ousam existir, dizer a verdade sem ferir e estar presentes sem ser tomadas pelo desejo de exclusividade. Há ainda, um convite à amizade intergeracional, ela fala da infância, da velhice, do laço que atravessa o tempo, do quanto precisamos aprender com as que vieram antes e cuidar coletivamente das que vem depois. Não é sobre idealizar mulheres, mas sobre desmontar a rivalidade, a inveja e a comparação. E para isso, é preciso trabalho psíquico: nomear os ressentimentos e aprender a admirar outra mulher sem automaticamente se diminuir e se sentir menos especial. É desaprendendo que podemos reaprender pois padrões não se quebram da noite para o dia.

Por fim, se na prateleira do amor, conceito criado pela psicóloga Valeska Zanello, buscamos ser escolhidas e validadas pelo outro, pela completude de uma suposta falta através de uma relação de amor romântico, na construção de uma amizade, a criação dos laços surge no reconhecimento. Do ponto de vista psicanalítico, as amizades femininas são laboratórios de subjetivação onde construímos as nossas identidades e onde podemos existir fora do olhar masculino que historicamente nos enquadrou. É nas amizades que muitas mulheres vão conhecer a admiração, a gentileza, a não violência. Não é preciso muito para que um vínculo nasça a partir do desejo genuíno de incentivar a outra na busca por um sonho. 

Se mulheres foram ensinadas a calar, não reclamar, não denunciar e não reivindicar nada, entre amigas, a palavra nasce criando linguagem e imaginação. É entre mulheres que muitas encontram seu primeiro espaço de autoria para inventar novas possibilidades de vida: nomes para acontecimentos e relações até então sem tradução. Quando uma mulher conta sua história, a outra descobre que não está louca. O que parecia delírio individual passa a ser entendido como um sintoma cultural e coletivo. Se entre amigas nomeamos o indizível umas das outras e falamos sobre o que sentimos sem máscaras, na escrita em nossos diários podemos ampliar reflexões, produzindo novas memórias e ressignificando narrativas a partir dessas conversas e testemunhos.

Como as suas amigas aparecem nas escritas que você registra na sua Mandala Lunar? Você já experimentou fazer uma pequena roda com caixinha de perguntas? Deixo aqui, perguntas para abrir diálogos, são flechas que podem te ajudar a navegar com as suas amigas por territórios ainda não explorados ou, quem sabe, possíveis de serem revisitados.

Você pode baixar as perguntas aqui.

Recorte as cartinhas e tire com suas amigas.

  • O que você aprendeu sobre o amor com amigas que não aprendeu com romances?
  • O que você criaria hoje se não tivesse medo do julgamento público?
  • Que desejos você deixou na infância e tem vontade de resgatar?
  • Qual você acha que é o seu atributo mais precioso como amiga?
  • Quais foram os sonhos (imagens oníricas) mais marcantes durante a sua infância e/ou adolescência que você ainda lembra?
  • Que acontecimento da sua história você sente que influenciou muito a sua formação como pessoa, mas poucas pessoas conhecem?
  • Que coisas você carrega das mulheres da sua linhagem, mesmo silenciosamente?
  • O que te faltou quando você era criança e como você se dá isso agora?
  • O que o seu corpo tem te contado?
  • Como foi a experiência de começar a menstruar?
  • O que te faz voltar a habitar o seu corpo quando você se sente desconectada dele?
  • O que você já perdoou em si mesma?
  • Onde o seu não ainda engasga e o limite precisa ganhar corpo?
  • Do que você está cansada?
  • O que é liberdade pra você na prática? O que te faz sentir livre?
  • O que você deseja, mas ainda não contou em voz alta por falta de coragem?
  • O que é sagrado para você e quais os pequenos “rituais” que te conectam a ele?
  • Que rios a maternidade (ou a escolha pelo não maternar) abriu na sua vida?
  • Como a maternidade transformou a sua sexualidade?
  • Como você tem nutrido a sua sexualidade?
  • Quando foi a última vez que você pediu ajuda para uma amiga?
  • Que raízes te mantêm viva e te dão a sensação de chão quando tudo balança e o mundo parece estar desabando?
  • Que ferida antiga ainda pede por nomeação e elaboração?
  • O que você acha que o seu eu do futuro vai te agradecer?
  • Como você deseja envelhecer?
  • Que ideais ainda te prendem e você deseja soltar?
  • Quais armas você carrega para se defender?
  • Que canto ou poesia te incendeia a alma?
  • O que a sua raiva tem te mostrado?
  • Como foi ou está sendo viver a menopausa?
  • Qual o maior desafio que você enxerga na sua comunicação?
  • Que situações ainda te fazem alimentar a rivalidade entre mulheres?
  • Com o que você tem sonhado no silêncio da noite?
  • Que aspectos indesejáveis da sua personalidade você ainda tem dificuldade em reconhecer e mudar?

Fico por aqui, desejosa de que os bons encontros por aí impulsionem novas narrativas na sua Mandala Lunar.

Silvia Zonatto
Psicóloga (UFRGS), especialista em Clínica Junguiana e co-criadora da Rubra Terra
@silviazonatto.psi

Arte de Karla Ruas para a Mandala Lunar 2026

Referências
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.
HOOKS, Bell. Comunhão: a busca das mulheres pelo amor. Tradução de Julia Dantas. São Paulo: Editora Elefante, 2024.
ZANELLO, Valeska – A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. Curitiba: Appris, 2022.

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