Imagine uma estátua da Grécia Antiga. Por acaso um corpo musculoso esculpido em um bloco de mármore branco se apresentou à sua mente? Se sim, a sua memória está obedecendo a uma construção cultural.
As famosas esculturas gregas não atravessaram o tempo sem intempéries. Além de perderem várias vezes o nariz, ou mesmo os braços, como a Vênus de Milo, e a própria cabeça, como a Vitória de Samotrácia, o que todas elas certamente perderam foi um importante elemento: a cor. Nos anos 1980, uma pesquisa acadêmica encontrou resíduos de pigmentos nessas estátuas branquíssimas. Com uso controlado de radiação, foi recuperada a composição química dessas tintas milenares, abalando a imagem que se tinha até aquele momento de uma cultura grega antiga marcada pela brancura e pela placidez. A ciência, assim, desmontou uma longa construção cultural europeia – e eugenista – fundada na valorização da neutralidade.
Há uma ampla produção intelectual que analisa como o Império Romano se apropriou da cultura grega antiga, reinterpretando-a segundo seus próprios valores e operando uma certa domesticação da mitologia pagã. Reconfigurações cristãs e modernas das ao longo da história europeia, com ênfase no Renascimento, consolidaram a associação entre neutralidade e parcimônia, de modo que o controle das emoções, simbolizado pela neutralidade e pelos elementos brancos, passou a ser entendido, sobretudo entre as elites, como sinal de elegância e reforçando a ideia de neutralidade como valor estético.
No século 18, alguns expoentes da história da arte formularam teorias que justificam moralmente essa visão, prolongando ainda mais seu simbolismo. Winckelmann, estimulando o “culto ao Antigo”, localiza nesse passado idealizado a fonte de uma pureza a ser buscada, afirmando que a tarefa do artista seria alcançar uma “simplicidade nobre” e uma “grandeza serena”, nas quais os detalhes não deveriam se impor à harmonia do todo. No mesmo período, Lessing propõe a busca pela “serenidade olímpica da Antiguidade”, segundo a qual mesmo as mais terríveis emoções não eram representadas por gritos, mas com suspiros. De modo mais explícito, Goethe, figura central do Iluminismo alemão, afirma em sua famosa Teoria das Cores que a dimensão cromática viva é uma preferência dos selvagens e iletrados.
Aos poucos, vamos vendo o refinamento de uma visão que relega o ornamento a um lugar de menor valor. Essa estética higienizada atravessa o tempo até a virada do século XX, quando se consolida no chamado estilo minimalista, alimentado tanto pela visão religiosa dos quakers quanto pela guinada modernista nas artes. Diante das vanguardas artísticas, movimentos conservadores reagiram de forma contundente. Nessa mesma linhagem de pensamento, Adolf Loos denunciava aquilo que considerava uma degeneração da cultura europeia provocada pela adesão ao ornamento.
O elogio ao “neutro”, portanto, traz consigo outro procedimento fundamental: a hierarquização do gosto. Do elogio de Susan Sontag ao camp à revalorização contemporânea da cultura popular, diversas abordagens – especialmente nas teorias do design e da comunicação – buscaram analisar esse processo, estabelecendo laços entre a formação dos estilos visuais e a criação de padrões de consumo. O chamado “bom gosto” é continuamente disputado pelas elites como forma de produzir distinção social e legitimar sua posição simbólica de dirigente na sociedade. A formação do gosto passa, assim, por uma complexa trama de processos socioeconômicos e, sobretudo, morais.
O problema de situar a neutralidade como um ideal estético superior é o de acabar produzindo a inferiorização de tudo que não seja neutro – isto é, do que é reconhecível como próprio de um lugar, vinculado a alguma tradição particular. Expressões estéticas não neutras são sempre expressões situadas, ligadas a um mundo específico, composto por sua cultura e sua natureza e moldado por experiências sensíveis singulares. A neutralidade modernista e minimalista produz um não-lugar apresentado como moralmente superior, assim operando uma esterilização cultural e uma pasteurização da mentalidade. Que mundo é esse em que se busca destituir das nossas produções culturais o seu potencial de produzir identidade e pertencimento?
O capitalismo conhece bem esse mundo, pois tem nele e no ideal de neutralização estética um aliado decisivo. Sujeitos desidentificados de suas referências culturais e territoriais são mais suscetíveis à padronização do gosto e à captura por ciclos contínuos de consumo. Como diz o ditado, somos latinas demais para sermos minimalistas. Vibramos com as cores que representam a nossa terra. Reconhecemos nas tradições a sabedoria milenar daqueles que construíram o território onde florescemos. Exaltamos o esmero e a minúcia de artistas e artesãos na confecção de elementos e detalhes que preenchem o nosso mundo de vida.
Afirmar a cor, o ornamento e as tradições locais é uma recusa consciente desse empobrecimento simbólico. Valorizar as cores da terra, os saberes ancestrais e o trabalho artesanal é recolocar a estética no campo da experiência situada. É reivindicar a identidade cultural, o pertencimento e a memória coletiva, que é motivo de orgulho e celebração.
Texto de Anelise De Carli para a Mandala Lunar