“Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia.”
— Gloria Anzaldúa
Sento-me para escrever. Mas antes, minha atenção precisa se desprender das tarefas da casa, dos cuidados com familiares, das mensagens não respondidas, das pendências que insistem em chamar.
Por que é tão fácil fazer qualquer outra coisa que não escrever?
Fazemos café, lavamos a louça, checamos o celular, respondemos e-mails: adiamos o encontro com o papel, que é também um encontro conosco.
Anzaldúa escreve: “Esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever?”
Escrever é, então, um gesto de resistência. Um modo radical de afirmar: eu existo.
Quando registramos o que vivemos, sentimos ou sonhamos, devolvemos espessura ao tempo. Criamos um abrigo pequeno onde a memória pode sentar-se conosco e conversar.
O gesto de segurar a caneta, de desenhar as letras, é uma forma de presença.
A mão pensa junto com o coração.
Muito antes de existirem cadernos, havia tábuas de cera, rolos de papiro, pequenas pedras. As pessoas escreviam nelas como quem fala consigo — notas soltas, pensamentos, fragmentos do dia.
Chamavam esses registros de hypomnemata: cadernos de acompanhamento, lugares onde o pensamento podia pousar antes de se perder no ar.
Mas havia um paradoxo. Ao escrever, não se guardava apenas o que se queria lembrar — escrevia-se também para libertar a memória.
Platão narra, no Fedro, a história do deus Toth, inventor da escrita, que acreditava ter criado um remédio para a memória. O rei Thamus o advertiu: a escrita, em vez de fortalecer a lembrança, poderia nos fazer esquecer. Afinal, quem escreve deposita algo fora de si.
O que o rei talvez não soubesse é que há esquecimentos necessários.
Escrever é varrer o excesso, abrir espaço na casa da mente para novas vozes. Guardar o que dói até que doa menos. Deixar no papel o que já não cabe no corpo.
A escrita, nesse sentido, não é só memória — é também ritual de esquecimento. Não para apagar o vivido, mas para devolvê-lo ao fluxo da vida, com menos peso e mais forma.
Quem escreve se desloca entre o lembrar e o deixar ir, como quem acende uma vela apenas para iluminar o que precisa ser visto. Escrever, então, não era só lembrar. Era também libertar. Um modo de deixar o pensamento descansar fora do corpo.
“Escrever é defender a solidão na qual a gente se encontra, é um isolamento compartilhável.”
— María Zambrano
Gosto de pensar o gesto de escrever como quem se prepara para receber uma amiga.
Antes de abrir a porta, ajeitamos o espaço: acendemos uma luz suave, varremos o excesso, deixamos uma cadeira vazia à espera.
A escrita também precisa dessa hospitalidade.
Ela não entra em ambientes apressados, cheios de ruído — gosta de silêncio, de chá quente, de um corpo disposto a escutar.
Preparar a casa para escrever é limpar o tempo por dentro.
Desligar notificações, abrir um intervalo, respirar fundo.
É dizer: “pode entrar, estou te esperando”.
Porque a escrita não chega quando queremos, mas quando criamos o clima para que ela se sinta em casa.
E quando ela vem, traz histórias, memórias, perguntas. Às vezes fala muito; às vezes apenas se senta ao nosso lado, em silêncio. O importante é deixá-la ficar.
Dormir, sonhar e aprender
A neurociência mostra que escrever ativa múltiplas regiões cerebrais, fortalecendo as conexões da memória. Escrever à mão, especialmente, envolve corpo e ritmo — transforma o pensamento em gesto, o gesto em lembrança.
Ao escrever sobre o dia, revisamos o vivido: reconstruímos mentalmente os eventos, as emoções, os detalhes. É como dizer ao cérebro: guarde isso, é importante.
O mesmo acontece com os sonhos: quando anotamos um sonho logo ao acordar, facilitamos o processo de lembrá-lo nas noites seguintes. A psique entende que essas imagens têm valor e começa a nos oferecer mais fragmentos, como se dissesse: agora você está ouvindo.
A escrita cotidiana nos ajuda a perceber o que está vivo em nós.
Não é preciso ser escritora para escrever.
A escrita não pede perfeição — pede entrega.
Um diário pode conter apenas uma frase: “hoje acordei triste” ou “sonhei com o mar, mas a água era escura”. Cada registro é uma pequena ancoragem no real.
Quando escrevemos, transformamos o ruído em linguagem. E ao fazer isso, nos transformamos também.
Vivemos cercadas por estímulos. O excesso de telas e informações enfraquece nossa capacidade de atenção.
Estudos mostram que muitas pessoas já não lembram nem dos últimos cinco posts que viram nas redes sociais.
A informação passa, mas não se transforma em experiência.
A leitura profunda e a escuta interior parecem estar se tornando cada vez mais raros.
Mas a escrita ainda pode ser um antídoto.
Escrever desacelera o pensamento, dá contorno às ideias, reativa o músculo da presença.
Escrever um diário é uma forma de meditar sobre si. Um sonhário, uma meditação noturna.
Ambos nos convidam a reduzir o ruído do mundo e voltar o olhar para dentro.
Escrever à mão, especialmente antes de dormir ou ao despertar, pode se tornar um pequeno ritual de reconexão.
Reserve um caderno só para isso.
Todas as noites, escreva algumas linhas: o que te tocou, o que te incomodou, o que te fez rir, o que sonhou. Mesmo que pareça banal.
Aos poucos, você começa a notar padrões, desejos, repetições, sonhos que voltam.
A escrita é como um espelho delicado: o que escrevemos nos lê de volta. Num tempo em que tudo se apaga tão rápido, escrever é um ato de amor — amor ao que fomos, ao que somos e ao que ainda podemos ser.
Pois ao fortalecer a memória, também fortalecemos nossa história.
Texto de Laura Pujol