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A complexidade do orgasmo e suas camadas

A origem da palavra orgasmo é tão indefinida quanto a história desse fenômeno fisiológico, anatômico e cultural — e o orgasmo tem mais a ver com a cultura do que grande parte das pessoas imagina.

Alguns etimologistas dizem que a palavra orgasmo vem do grego, e significa, a princípio, intumescência ou plenitude; outros acreditam que vem do indo-europeu “werg” que significa trabalho. Se é complexo definir a origem da palavra, pode ser ainda mais complexo definir qual o melhor caminho para que se alcance o orgasmo?

Ao investigar o corpo feminino durante o processo de excitação até alcançar o clímax sexual, os cientistas descobriram algumas coisas simples, mas que mostram como nossa mente impressa pela cultura pode reagir e bloquear um orgasmo. O processo não começa no corpo físico, mas no corpo sensorial — e por isso um curso de “sentada” ou “vibrador”, por mais que pareça ajudar a “chegar lá” ao orgasmo (pois o faz de maneira imediata), não auxilia ao “chegar lá” que realmente precisamos: onde devemos ir para ter liberdade, que é um pouco mais longe do que esses cursos possibilitam.


Os 4 pontos que consideramos mais centrais para entender o orgasmo, especialmente a função da mente, do corpo sensorial e da influência da cultura na qual vivemos:

1 – Descobriram que a ocitocina (hormônio responsável pelo orgasmo e fundamental na hora do trabalho de parto) é cumulativa, ou seja, não se obtém uma quantidade considerável desse hormônio apenas na hora da relação sexual, ela precisa ser cultivada através da segurança (material e emocional). A ocitocina é liberada cada vez que nos sentimos amadas, protegidas, seguras; também é liberada quando praticamos atividades físicas e até mesmo quando estamos entre mulheres e amigas. Então podemos concluir que o orgasmo é fruto de um cultivo que acontece fora da cama, fora das quatro paredes.

As pesquisas mostram que mulheres lésbicas tem muito mais orgamos que as mulheres hétero. Ao se relacionar com outra mulher, a segurança, a confiança, o cultivo da ocitocina é muito mais presente do que nas relações hétero que costumam causar insegurança e sobrecarga nas mulheres.

2 – Mapeando o cérebro feminino perceberam que a ocitocina, quando aumentada pelo contato íntimo e sexual, atinge o córtex pré-frontal, área do cérebro responsável pela nossa tomada de decisões, e muitas vezes nesse momento fazemos algumas loucurinhas das quais nos envergonhamos depois. Quando estamos envergonhadas, inseguras e tentando “manter o controle” nós não deixamos a ocitocina fluir pelo córtex pré-frontal e, com esse bloqueio, a próxima fase rumo ao clímax fica comprometida — vivemos uma cultura que nos impregnou de uma performance sexual e muitas vezes terminamos por controlar nossas atitudes para cumprir com essa expectativa.

3 – Depois do córtex pré frontal, com ainda mais ocitocina no corpo, a próxima área afetada é o hipocampo, responsável pelas nossas memórias – esse é o momento em que estamos ali no ato e pensamos no boleto que não pagamos, na roupa por estender, no lixo por tirar. Essa área responsável pelas memórias guardam também os traumas, memórias ruins de outras relações e registros de abusos ou castrações sexuais que nos foram impregnados pela cultura — a memória da sua mãe dizendo para você não engravidar, ou que aquilo é pecado e outros exemplos de um país majoritariamente cristão.

4 – Até agora falamos da parte fisiológica, agora vem a parte anatômica do orgasmo: se conseguirmos cultivar a ocitocina, atravessar a fase do controle, depois a fase das memórias intrusivas, caminhamos para um acúmulo significativo de ocitocina e podemos alcançar um orgasmo — mas tem um último ponto não menos importante: a parte anatômica onde vamos ter a sensação enorme de relaxamento e prazer, o clímax, o ponto alto da relação.

Nosso assoalho pélvico é o ponto com mais terminações nervosas do corpo feminino, é uma musculatura extremamente forte e também flexível — o útero, pulsante, também é um músculo liso e é responsável pelos espasmos mais intensos. Com o estímulo da ocitocina essa musculatura contrai e relaxa como em uma massagem profunda, intensa e prazerosa, mas se a musculatura estiver muito tensa, inflexível e rígida, não há ocitocina que a faça pulsar. Novamente nos deparamos com a cultura, que nos diz para sentarmos de pernas fechadas, usar roupas apertadas e sentar apenas em cadeiras, e não no chão. Também o hábito do sedentarismo pode ser nocivo para a saúde muscular pélvica, impedindo orgasmos. Auto massagem, alongamentos, exercícios pélvicos são muito importantes para o clímax.

Essa compreensão sobre o processo do orgasmos me custou alguns anos de estudo e artigos acadêmicos feitos para que “leigas” não entendam, mas desbravei esse mundo para levar conhecimento e liberdade às mulheres, esse é o papel de uma Educadora Menstrual e Sexual. Você pode imaginar que depois de tanto estudo é muito frustrante ouvir definições simplistas e generalistas sobre orgamos, a mais comum delas: o vibrador resolve.

Vou abrir um parêntese aqui, um parêntese um pouco grande para falar sobre os vibradores:

Esse equipamento foi criado por médicos ocidentais no século XIX para tratar a histeria, uma suposta doença nervosa que afetava mulheres (termo já não é mais aceito por ser misógino e insuficiente). Cansados de ter que masturbar as mulheres com as próprias mãos à mando de seus maridos, inventaram um equipamento que fizesse o trabalho de “relaxar os nervos das mulheres”. No século XX e XXI ele vem se tornando símbolo de liberdade sexual — e especialmente no capitalismo tardio ele é um símbolo de autonomia, inclusive emocional. Mas será que esse equipamento é de fato capaz de resolver a profunda falta de prazer das mulheres?

O vibrador evita que tenhamos que lidar com a vergonha e com as memórias — tudo isso através de um estímulo intenso, humanamente impossível de ser alcançado em qualquer encontro íntimo. O vibrador é o fast food do sexo. Rapidamente chega-se ao clímax, mas será que é de fato libertador, ou só uma estratégia solitária para apaziguar nossa “histeria”? Nos mais de 50 cursos que já ministrei, em círculos de mulheres, rodas e atendimentos individuais, sempre tem uma mulher que diz ter se viciado no vibrador e que é incapaz de alcançar o orgasmo no encontro com outra pessoa. Isso é preocupante, afinal, somos seres sociais e coletivos e a sexualidade é também uma ponte para o outro, uma forma de estabelecermos vínculos. Além disso, o “atalho” do vibrador nos impede de desenvolver a presença, de manejar os traumas, de confiar nos outros.

Ao nos tornarmos conscientes dos mecanismos do nosso próprio prazer, cultivar a ocitocina, identificar bloqueios, conhecer nosso corpo, massagearmos a nós mesmas, terapeutizar nossos processos podemos também viver com mais prazer e, quem sabe, ter orgasmos que nos libertem e emancipem — sem buscar caminhos simples e pílulas rápidas do prazer.

Texto de Bárbara Ferreira

Referências:
Kunyaza, the secret to female pleasure – Habeeb Akande
Tantra, o culto ao feminino – A. Vans Lysebeth
O Calibã e a bruxa – Silvia Federici.
https://revistagalileu.globo.com/blogs/fator-x/noticia/2015/05/ciencia-comprova-que-igualdade-de-genero-existiu-na-pre-historia.html
Sex and death: are they related? Findings from the Caerphilly cohort study – An Event-Level Analysis of the Sexual Characteristics and Composition Among Adults Ages 18 to 59: Results from a National Probability Sample in the United States (3)
Leia mais em: https://super.abril.com.br/ciencia/a-ciencia-do-orgasmo
Kunyaza, the secret to female orgasm, AfrikNews, 30 July 2008
https://marinacolerato.substack.com/p/celibato-como-praxis-feminista-parte
https://marinacolerato.substack.com/p/celibato-e-cura-reconexao-com-o-euhttps://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34267175/

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