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Demorar na noite longa: rituais oníricos para o solstício de inverno

Fizemos uma playlist para escutar durante a leitura.

“Porque será muito necessário construir essas pontes e portas entre os mundos; porque renunciar jamais fará parte do meu léxico interior.” (Natassja Martin, Escute as Feras)

O solstício de inverno marca o instante em que a noite se estende ao seu limite. É quando tudo silencia: a terra, o corpo, o tempo. No hemisfério sul, acontece entre 20 e 21 de junho, e é a noite mais longa do ano. O sol, dizem os antigos, parece parar. E nessa pausa, algo se abre. O que o tempo não disse durante o ano inteiro começa, enfim, a sussurrar.

Gostando dele ou não, o inverno é fundamental para a vida terrestre. Espiritualmente, ele oferece a nós sua presença profunda: tempo da fermentação, da raiz que trabalha em silêncio, do sonho que cresce por dentro. Quando o torpor do calor dá lugar ao silêncio. A natureza desacelera, o inconsciente se alonga, e os sonhos ganham espessura.

A psique fermenta silenciosamente. Como as sementes que dormem sob a terra, os sonhos também germinam no escuro. O inverno é tempo de fermentar, não de florescer. Há sabedoria no que não se apressa. Há gestação naquilo que parece inércia.

Do longo sono secreto/ na entranha escura da terra,/ o carbono acorda diamante”, escreveu a poeta paraense Helena Kolody. 

A natureza toda nos convida a esse compasso mais lento. Animais hibernam, folhas caem, galhos se despem. Por que nós insistimos em manter o ritmo acelerado? O inverno é o momento de escutar o que só se ouve no silêncio. É tempo de cuidar do invisível. E se há um alimento essencial nesse tempo, ele é o sonho.

“Solstício” vem do latim sol sistere, o sol parado. Um instante em que a luz cede espaço à sombra, e o mundo respira mais lentamente. Para muitas tradições, é o momento em que a Deusa, em seu aspecto anciã, gesta a luz futura. É também quando os véus entre os mundos se afinam, e os sonhos ganham voz. A noite se torna espessa, fértil, simbólica. Um útero escuro onde imagens e forças sutis circulam.

Dormir nesse tempo é alinhar-se com a espessura do tempo. O inconsciente coletivo se agita, as imagens se embaralham, e o que é pessoal se mistura ao que é planetário. Sonhar torna-se uma forma de escuta da Terra. O que sonhamos nesse tempo talvez não seja só nosso. Talvez pertença ao tempo, ao mundo, às dores partilhadas e às possibilidades ainda sem forma. É quando o sonho pode ser também profecia, denúncia ou semente.

Quando o Sonho encontra o Solstício

O acontecimento é atual, mas ocorre há milhões de anos: o momento exato em que a noite toca sua maior extensão. O mundo se suspende entre o silêncio da terra gelada e o sussurro tênue de algo que ainda vai nascer. Dentro de uma clareira esquecida no tempo, um fogo arde devagar, sem pressa. 

Ali, sentam-se dois antigos companheiros: o Sonho e o Solstício de Inverno. O Solstício veste um manto feito de musgo, raiz e sombra. O Sonho, uma túnica de névoa e símbolos. Ambos carregam o tempo em formas diferentes. E esta noite, decidem conversar.

 O diálogo é escrito em um Sonhário antigo, com letras cuidadosamente desenhadas.

SOLSTÍCIO:  Chegou minha hora. Tudo se retrai. As folhas se voltam para dentro, os animais recolhem seu fôlego, os humanos… tentam resistir. E você, por que vem me visitar?

SONHO: Porque é no teu tempo que eu falo mais alto.  Você escurece o mundo, e eu acendo minhas imagens.

SOLSTÍCIO:  Mas não temem o escuro, as tuas sonhantes?

SONHO:  Temem. Mas é quando a luz do dia se esconde que a alma ouve o que mais precisa.  A pressa dorme, a vigília cede, e eu escorro pelas fendas.

SOLSTÍCIO:  Você tem andado cheio de presságios ultimamente. Aviso, espelho, sombras… por quê?

SONHO: Porque os humanos esqueceram de me escutar acordados. Estão cansadas e precisam descanso, distração ou decifração.  Mas eu não sou enigma. Sou linguagem do que ainda não tem nome.

SOLSTÍCIO: Eu também sou mal compreendido.  Pensam que sou o fim.  Mas sou apenas a pausa. A inflexão.  O momento em que tudo se curva, como uma planta ao frio. As bruxas bem sabem, é nesse instante que o novo começa a se formar.

SONHO:  Talvez seja por isso que gosto tanto de ti.  Você demora.  Você me dá tempo.

SOLSTÍCIO: Você me dá profundidade.  Na tua presença, até o silêncio ganha contorno.

Pausa. O fogo crepita. Uma coruja passa voando, sem pressa.

SONHO: E se fizermos juntos um ritual?  Uma pequena oferenda para que voltem a nos escutar?

SOLSTÍCIO:  A duração como ritual.  A escuta como caminho.

SONHO:  Então ofereço minhas imagens mais sutis.  Aquelas que surgem entre o sono e o despertar. 

SOLSTÍCIO: Ofereço o tempo espesso. A noite sem culpa.  O frio necessário para germinar o que ainda é semente. 

O fogo baixa. A madrugada se aproxima do seu ponto mais escuro. Ali, onde o tempo quase para, o Sonho e o Solstício partilham o escuro.  Não como ausência, mas como ventre.

Sete formas de ouvir o invisível na estação do recolhimento

1. Preparar o leito como um altar de travessia
Antes de dormir, limpe o quarto com fumaça de alecrim ou arruda seca. Passe um pano escuro sobre os móveis, como quem apaga o ruído do dia. Sob o travesseiro, coloque um pequeno objeto escolhido com intenção: um cristal, uma pena, uma semente. Ele será o guardião da travessia onírica.

2. Infusão lunar para abrir o corpo ao sonho
Na última luz do dia, prepare uma infusão com ervas como jasmim, camomila, lavanda ou folha de macela. Tome como quem bebe um feitiço suave. Se possível, deixe a água repousar sob o luar (ou sob o céu noturno) por alguns minutos antes de aquecer.

3. Sussurrar o feitiço da pergunta
Com a cabeça já deitada, sussurre uma pergunta ao travesseiro. Faça isso como se estivesse costurando um fio invisível entre o sonho e o tempo escuro. Algumas perguntas possíveis:
“O que ainda dorme em mim e precisa germinar?”
“Qual imagem quer me visitar esta noite?”
“A quem eu preciso encontrar no escuro?”

4. Guardar o sonho em tecido vivo
Ao acordar, não anote em papel comum. Escreva o sonho em um tecido claro, com tinta ou linha. Ou então, costure símbolos, bordados ou signos que capturem o espírito da imagem sonhada. Cada sonho tecido torna-se um pedaço do manto da noite.

5. Queimar a palavra, acender a imagem
Escolha um fragmento do sonho que te tocou — uma frase, uma cor, uma sensação. Escreva isso em um papel fino e queime com uma vela preta, azul ou vinho, pedindo que o aprendizado retorne quando for tempo. A fumaça leva o recado. O sonho não se perde: se transforma.

6. Vigília da meia-noite
Na noite do solstício, mantenha-se acordada entre meia-noite e 01h. Nesse tempo, acenda uma vela e fique em silêncio absoluto. Coloque os pés no chão, o rosto no vento. Peça para sonhar: não por resposta, mas por companhia. As imagens que vierem depois disso são sementes de poder.

7. Devolver o sonho ao mundo por gesto
Depois de viver um sonho marcante, não fale dele por sete dias. Depois, ofereça-o ao mundo de forma mágica: pendure uma fita em uma árvore, deixe um símbolo desenhado com cinza no chão, costure uma palavra em silêncio. O sonho irá circular, mas sem explicação. Apenas gesto.

Fazer alma no tempo escuro

“O sonho é a língua nativa da alma.” (James Hillman, O Código do Ser)

Permitir-se sonhar é cultivar a escuta interior, e a escuta é um dos maiores atos de resistência que se pode praticar em tempos difíceis. Dormir com intenção e sonhar com liberdade pode ser um gesto revolucionário. Pode ser também um refúgio, uma forma de digestão simbólica do excesso do mundo. Um modo de voltar a si, sem se alienar.

O psicólogo James Hillman diria que precisamos “fazer alma”. Isso não significa buscar a transcendência, mas cultivar profundidade. O sonho, o descanso, a escuta, a oração, a consciência são formas de nutrição anímica. Em tempos de catástrofes ambientais, violências sistêmicas e crises políticas, fazer alma é também fazer resistência. É sustentar a sensibilidade.

bell hooks, em Tudo sobre o amor, nos lembra que o amor é uma escolha ética. Amar o mundo é um ato radical. Esse amor começa com a atenção. Começa com a escuta. Com o silêncio que escava, com o sonho que ilumina. Com a coragem de permanecer sensível quando tudo convida ao entorpecimento.

Na noite mais longa do ano, não se apresse. Permita-se observar atentamente os movimentos do desejo. Sonhe como quem conversa com uma velha amiga. Desperte com a consciência de que, mesmo em meio às trevas, uma pequena chama segue acesa dentro de ti. O mundo lá fora pode estar em colapso. Mas dentro de ti, ainda nasce o Sol. 

[Texto inspirado por encontros entre mulheres, pelos ensinamentos de bell hooks, pelas orações coletivas e pela escuta dos tempos.]

Por Laura Pujol, que prefere sonhar no inverno
Arte de Natália Gregorini para a Mandala Lunar 2025

1 Comentários

  1. Romina

    22 de junho de 2025

    Muita insiração, colo e sentido nesse texto escrito ” a mãos ” sensíveis. Graças!

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