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Cronobiologia

Thomas Edison arruinou o sono de todos. É o que diz o psicólogo Michael Breus, quando o assunto é o inventor da luz elétrica.

“Bastaram meros 125 anos para desfazer 50 mil anos de cronometragem biológica perfeita. Dizer que nossa fisiologia não evoluiu tão rapidamente quanto nossa tecnologia é o eufemismo do milênio. Como resultado, o nosso quando está muito, mas muito atrasado.”

O Poder do Quando, Michael Breus

Cientista e empreendedor no século 19, Edison fundou dezenas de empresas para comercializar suas criações, incluindo a General Electric — no caso da luz elétrica —, que, por curiosidade, atua no Brasil há mais de 100 anos, nos setores de energia, saúde e aviação.

A questão é que a invenção da luz elétrica, em 1879, transformou profundamente a maneira como vivemos e nos relacionamos com o tempo. A luz artificial nos deu liberdade para estender nossas atividades pela noite, mas também nos afastou do ritmo natural, que, por milênios, guiou o sono, o despertar e o descanso.

Edison acreditava que não dormir aumentaria a produtividade, e essa ideia foi se espalhando ao longo das décadas, criando um mundo em que estar sempre ativo passou a ser visto como um sinal de sucesso.

Segundo Breus, a segunda maior perturbação do relógio biológico foram os avanços nos transportes — carros e aviões, que permitiram percorrer longas distâncias em curtos períodos de tempo. O corpo leva um dia para se adaptar a uma diferença de fuso de uma hora.

O que diz a ciência

Há séculos, a ciência investiga os ritmos biológicos de todos os seres vivos. E hoje sabemos que os humanos são, por natureza, seres diurnos: nossa fisiologia evoluiu para funcionar de forma mais eficiente à luz do dia e, à noite, se ajustar para o descanso e a regeneração.

Isso significa que nosso corpo desenvolveu uma organização para entregar substâncias, nas concentrações certas para os órgãos, em horas certas do dia. Todos os processos metabólicos são cuidadosamente equilibrados para ajudar a manter a nossa saúde.

Esse ritmo que o nosso corpo segue está completamente sincronizado com a exposição ao sol pela rotação da Terra. Então, o principal fator externo que influencia o ritmo biológico dos seres humanos é a alternância entre dia e noite.

Circadiano deriva do latim circa diem, que significa “cerca de um dia”. Por isso é a palavra usada para descrever os ciclos biológicos que ocorrem em um período de aproximadamente 24 horas no nosso corpo. 

Ritmos Internos, Externos e Sociais

Luiz Menna e Daniela Wey, professores do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, explicam (1) que nós, humanos, temos organizações rítmicas endógenas, que vêm de dentro das células, e também ritmos externos que afetam as nossas estruturas.

A pesquisa aponta que os ritmos biológicos mudam ao longo da vida, alguns já estão presentes na vida fetal, outros só aparecem bem mais tarde (puberdade) e muitos se alteram na velhice. Os ciclos ambientais capazes de promover a sincronização desses ritmos também não permanecem igualmente relevantes ao longo da vida.

Da mesma forma, nossos ritmos são profundamente influenciados pelo ambiente ao nosso redor. A maneira como organizamos nossa vida — desde a rotina de trabalho até os momentos com amigos — tem um impacto direto nas respostas do nosso corpo e, por isso, também molda nosso bem-estar e equilíbrio.

E o corpo tem plasticidade. Mas há limites para essa plasticidade, que impedem a adaptação completa dos nossos ritmos biológicos ao trabalho noturno, por exemplo.

Muitas vezes, acreditamos que podemos nos adaptar facilmente a essas mudanças sem grandes consequências. Mas hoje sabemos que não é bem assim. A ciência já demonstrou, por meio de diversos estudos, que os esquemas irregulares de trabalho podem trazer impactos significativos para a saúde, e é importante estarmos atentos a isso.

Cronodesajuste

Nosso corpo e nossa mente seguem regidos por um tempo próprio, profundamente conectado à natureza. Quando nos afastamos desse compasso biológico, surgem os sinais de desgaste: dificuldades para dormir, cansaço constante, estresse e até problemas de saúde. 

Como mostra Breus, esse desencontro entre a tecnologia e o nosso ritmo interno gerou o que os cientistas chamam de cronodesajuste. E não se trata apenas do fisiológico — ele também tem muito a ver com a maneira como a sociedade, cada vez mais acelerada, nos incentiva a produzir sem descanso.

A depressão unipolar, por exemplo, está ligada a mudanças nos ritmos do corpo. Um organismo em sintonia com seus ritmos tende a responder melhor aos desafios, sejam eles físicos ou emocionais. Há evidências de que essa harmonia pode influenciar até a forma como lidamos com infecções e outros processos. 

O trabalho noturno pode desencadear diversas doenças, como úlcera péptica, câncer de mama e apneia do sono. Pesquisas (2) indicam que ele representa um fator de risco importante no desenvolvimento de câncer.

O tempo, de alguma forma, atravessa tudo o que somos e sentimos.

Sociedade do Desempenho

O filósofo Byung-Chul Han, no livro “Sociedade do Cansaço”, reflete sobre como nos tornamos nossos próprios vigilantes, sempre cobrando mais de nós mesmos. Se antes o trabalho era regulado por horários fixos, hoje nos sentimos impelidos a estar disponíveis o tempo todo, seja para o trabalho, seja para o excesso de estímulos que nos cercam.

Não há mais barreiras visíveis entre trabalho e vida pessoal no que Han chama de “sociedade do desempenho”. O modelo disciplinar, com regras rígidas e controle externo, foi substituído por uma lógica de autogerenciamento, na qual cada indivíduo se torna responsável por sua própria produtividade. 

Não há mais muros, supervisores ou relógios de ponto, mas a pressão por resultados permanece, agora vinda de dentro. O ideal de liberdade está misturado à necessidade de ser sempre melhor, mais eficiente, mais produtivo.

E o que antes era uma obrigação imposta, hoje se manifesta como um impulso interno que nos empurra a produzir sem parar. Não somos mais vigiados por outros, mas nos tornamos vigilantes de nós mesmos, guiados por métricas, metas e uma constante sensação de que não estamos fazendo o suficiente.

Acreditar que somos máquinas incansáveis ​​é, de certa forma, um ato de negação da nossa própria biologia — um efeito, sobretudo, do hipercapitalismo. O cérebro humano, tão criativo e cheio de ideias, pode nos levar a acreditar que “aguentamos” viver fora dos ritmos naturais. Mas essa desconexão cobra seu preço.

Acertar a agenda biológica

Jennifer Ackerman é uma escritora americana que escreve sobre ciência, natureza e saúde há mais de trinta anos. 

Apesar de a maior parte da sua pesquisa estar voltada para pássaros e corujas, fez desvios para a biologia humana para escrever sobre similaridades genéticas entre humanos e outros organismos, o longo fio de DNA que nos conecta a todos os seres vivos.

Seu livro “Amar, Dormir, Comer, Beber, Sonhar: 24 horas na vida do seu corpo” avaliou pesquisas científicas para simular uma viagem de 24 horas pelo corpo humano. 

“Muitos de nós nos vemos como criaturas cerebrais, movidas principalmente pelo que vai em nossas mentes. Mas, frequentemente, nós somos movidos pelo que vai na parte inferior de nossos cérebros — pelos escondidos e intrigantes altos e baixos, crises e triunfos do nosso corpo. Nós apenas não sabemos disso. Nós temos pouca consciência dos ritmos sutis que o nosso corpo experimenta na pressão arterial, no nível hormonal, no apetite. Graças a esses ritmos, há horas boas e ruins para atividades como revisar um manuscrito ou tomar decisões” diz Ackerman em entrevista.

O contato com essas informações enquanto escrevia o livro fez com que ela mudasse alguns hábitos. “Estou mais atenta à importância do horário nas minhas atividades quando agendo reuniões, por exemplo, e passei a respeitar mais as necessidades do meu corpo, da prática de exercícios até a soneca à tarde”.

Trouxemos aqui algumas considerações, baseadas no livro de Jennifer Ackerman:

– Assim que acordamos, ficamos deitados por alguns minutos em um estado chamado “hipnopômpico”. Quando levantamos, ficamos cambaleantes e desorientados devido à inércia do sono. Para a maior parte das pessoas, esse fenômeno some em 10 minutos, mas pode permanecer por algumas horas. 

– Durante esse tempo, a temperatura do corpo ainda é baixa, mas a pressão sanguínea sobe rapidamente. Há um crescimento de 50% do hormônio do estresse cortisol, que está sendo bombeado pela corrente sanguínea, nos preparando para o dia.

– Como as plaquetas de coagulação são mais abundantes, o sangue fica mais grudento. Isso significa menos sangramento quando nos cortamos! Mas também é a hora em que ataques cardíacos são mais frequentes.

– No café da manhã, é bom aproveitar o cheiro antes de beber algo: 75% de como aproveitamos os sabores não é pela língua, mas pelo cheiro! Os vapores passam pela boca, na área do palato mole, dentro da cavidade nasal e para o bulbo olfatório.

– A nossa atividade mental está no pico no fim da manhã. A maioria de nós está afiada para o trabalho de duas horas e meia a quatro horas depois de acordar. Mas nossa memória é impactada com o passar do dia. De manhã, nós esquecemos cerca de 5 fatos e pela tarde esquecemos cerca de 14. À noite, nosso relógio biológico parece desligar as proteínas envolvidas em formar memórias de longo prazo, por isso é melhor não estudar para uma prova a noite toda.

– Hora do almoço: nosso estômago é capaz de expandir um pouco mais de um litro para receber uma refeição. A comida permanece lá por algumas horas antes de ser mandada para o intestino delgado. Nós digerimos refeições sem nem pensar sobre isso — na verdade, tem um sistema na nossa barriga chamado de sistema nervoso entérico, que realiza tudo a respeito de sentir nutrientes, medir ácidos e coordenar o sistema imunológico para defender nosso intestino.

– É por volta de 14h30 e o almoço nos deixa preguiçosos e fatigados. Depois da refeição, o corpo tem um pequeno boost de energia da glicose, que é seguido por uma onda de insulina, o hormônio que transporta açúcar para suas células. Cientistas acreditam que a insulina pode tirar muita glicose do nosso sangue, causando uma queda livre de energia. Portanto, esse fenômeno ocorre mesmo quando não almoçamos.

– 16h30 e está na hora de ir para a academia. Apesar de muitos tentarem treinar de manhã, estudos sugerem que você pode ganhar 20% mais força muscular treinando de tarde. (A manhã é mais propícia a exercícios que exijam equilíbrio e acuidade). É à tarde que a percepção da exaustão é menor, as juntas estão mais flexíveis e as vias aéreas, mais abertas. O corpo esquenta e, a cada um grau de elevação, há um aumento de dez batidas cardíacas por minuto. Os maiores recordes esportivos são atingidos entre 15h e 20h. 

– Agora começamos a noite convidando alguns amigos para beber. Beba aquela cerveja ou vinho entre 17h e 18h, quando o fígado é mais eficiente na desintoxicação do organismo. Em um estudo, os que bebem vodka às 21h têm um tempo de reação e função psicológica pior do que os que tomam a mesma dose às 18h.

– São 23h agora, a hora mais popular para atividade sexual. Isso tem pouco a ver com nosso corpo e mais com os horários sociais. Na verdade, os níveis de testosterona são bem mais baixos à noite e atingem o pico às 8h. Para os homens, a qualidade do sêmen é melhor à tarde, com mais espermatozoides por ejaculação. As mulheres apresentam variação de horários, além de sentirem uma interferência muito maior do restante do ambiente na resposta sexual da excitação — o que tem a ver com a nossa cultura machista, centrada no prazer masculino. 

– Você vai dormir e finalmente começa a divagar: a melatonina é secretada pela glândula pineal, que começa o ciclo do sono, o qual acontece múltiplas vezes durante a noite. Uma mudança de ondas alfa sonolentas para ondas theta de baixa frequência significa o início do sono. E assim que o sono se aprofunda, nosso cérebro se move para ondas delta longas. Para crianças, dormir é a hora em que 90% do crescimento ósseo ocorre.

– Finalmente, ao ir para o sono REM, o nosso cérebro está tão ocupado quanto durante o dia, atirando ondas theta com estouros de alfa e beta. Os sonhos ocorrem em todos os estágios do sono, mas é durante o sono REM que nossos sonhos são mais vívidos e intensos. 

Exames cerebrais têm mostrado que neurotransmissores como serotonina, histamina e noradrenalina não estão operantes nesse período, desligando a razão e o sentido de tempo lógico — o que explica alguns sonhos estranhos. Nós sonhamos por 1 hora e meia a 2 horas a cada noite, o que significa que gastamos mais ou menos 6 anos sonhando durante a nossa vida!

– No meio da noite, nosso corpo acorda periodicamente — algo chamado de microdespertares, os quais podem durar segundos, embora ocorram entre 200 e 1.000 vezes por noite.

– Pelas 4h30, a temperatura corporal está muito baixa. Em algumas horas, será um novo despertar.

Juliana Fronckowiak é jornalista. Interessa-se por assuntos relacionados à ecologia, saúde e igualdade racial e de gênero.
Arte de Natália Gregorini

Fontes:

¹ Pesquisa Ontogênese do sistema de temporização: a construção e as reformas dos ritmos biológicos ao longo da vida humana. Luiz Menna-Barreto, Daniela Wey, Instituto de Ciências Biomédicas – USP (2007)
² Pesquisa “Trabalho noturno como fator de risco na carcinogênese”
O Poder do Quando, Dr. Michael Breus. https://pt.scribd.com/document/499718052/O-Poder-do-Quando-Dr-Michael-Breus
Ritmos Circadianos. https://nigms.nih.gov/education/fact-sheets/Pages/circadian-rhythms.aspx
Silvia M. N. Ritmos biológicos. Departamento de Fisiologia, IB Unesp-Botucatu, 2011. https://www1.ibb.unesp.br/Home/Departamentos/Fisiologia/Neuro/15ritmos_biologicos.pdf
Cronobiologia: conheça as horas mais propícias para cada atividade no seu dia a dia, artigo de Frederico Lobo. http://ecodebate.com.br/2012/04/17/cronobiologia-conheca-as-horas-mais-propicias-pra-cada-atividade-no-seu-dia-a-dia-artigo-de-frederico-lobo/
Jennifer Ackerman traz as corujas à luz. https://www.bookpage.com/interviews/jennifer-ackerman-interview-what-an-owl-knows/
‘Steve Jobs do passado’, Thomas Edison lucrou com invenções. https://www.terra.com.br/economia/meu-negocio/steve-jobs-do-passado-thomas-edison-lucrou-com-invencoes,73c55ac877f88410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html?utm_source=clipboard

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